quinta-feira, 10 de julho de 2014

A Raposa, as Uvas e a Copa do Mundo



                                                         
                               Gilson Marcon de Souza

Vulpy já não caminhava tão decididamente quanto antes. É verdade que o percurso que tinha de fazer desde a Vila Maçarico até o Braz era extenuante; não era fácil pegar um ônibus lotado logo às 5:20 da manhã, depois o trem, o metrô, outro ônibus e ainda ter de andar mais cinco quarteirões para trabalhar na loja de tecidos.
Na volta tinha de repetir tudo de novo, mas ia diretamente para a escola, pois não podia sequer pensar na possibilidade de dar uma paradinha em sua toca.
Tinha de sacrificar alguma coisa, na verdade mais do que isso: sacrificar um banho, uma refeição rápida e quente, um cochilo rápido. Nada disso, a vida de Vulpy era de sacrifícios e renúncias. De manhã, engolia um pedaço de pão seco e uma xícara de café preto: o leite era para os irmãos menores. Se houvesse alguma fruta também era para os pequeninos (se houvesse).
Vulpy era uma raposa ruiva, baixinha, pernas curtinhas, magra, mas sempre atenta. Suas orelhas grandes e seus olhos atentos trabalhavam em conjunto. Os olhos eram pequenos, mas não deixavam passar nada; é bem verdade que ficavam menores ainda quando estava com sono, mas aprendera a prestar atenção em tudo por causa das atribuições na loja.
Na verdade Vulpy já era uma raposa atenta desde que seus pais se separaram e sua mãe adoecera. Amadurecera e ficara adulta antes da hora.
Apesar dos seus dezenove anos, Vulpy já pensava como uma raposa adulta. Racionar, dividir, compartilhar, cuidar dos irmãos menores, fazer contas, prestar atenção no movimento da loja, nos clientes, nos funcionários a ensinou a ser atenta e ficar de olho em tudo e em todos.
Às vezes era considerada oportunista e matreira, mas ela tinha de ser assim para sobreviver; não se importava com isso. Vulpy tinha um objetivo: terminar a faculdade de Administração de Empresas e chegar a ser gerente da loja. Mas sua paixão maior era o teatro e a dança.
Segunda-feira era dia de pôr em ordem os pensamentos, organizar as atividades, dividir as tarefas para os irmãozinhos, fazer listas: quem vai dar remédios para mãe, quem vai levar o lixo, quem vai lavar a louça, quem vai fazer o almoço e quem vai lavar a roupa.
Todos os cinco irmãos participavam das atividades. Desde cedo todos aprenderam que precisavam colaborar para sobreviver.
       Já estava nervosa, pois o ônibus que passa de hora em hora falhou e agora deveria caminhar a pé por quase dois quilômetros até a avenida.
       Não era tão ruim assim caminhar, Vulpy só detestava quando chovia, pois o barro vermelho da estrada de terra era implacável com seus sapatinhos delicados. Também ficava indignada com a altura dos degraus do escadão da viela: tinha de fazer um esforço hercúleo para dar cada passo (mais de cento e dez degraus grandes), um desafio enorme para suas patinhas espremidas  dentro do calçado e perninhas curtas. Mas ela ficava indignada mesmo era com os cachorros da rua: viviam soltos, sem que ninguém os detivesse. Vulpy tinha ódio de morte quando aqueles cachorrões se aproximavam, chegavam por trás e cheiravam bem debaixo de seu rabo. Isso lhe doía na alma. Sentia-se humilhada e impotente. Não gostava de ser confundida com uma cadela: ela era uma raposa e tinha muito orgulho disso.
O esforço para alcançar o ônibus da avenida foi recompensado, pois era esse ônibus que sua prima e melhor amiga costumava pegar.
Dito e feito, depois de abrir caminho a cotoveladas, Vulpy imediatamente conseguiu avistar sua prima num dos bancos do fundo. Agora, se fosse rápida, bastaria apenas dar uns passos firmes para alcançar a prima Foxy, que, espertamente, sempre tratava de salvaguardar um banco para Vulpy, tomando assento bem no fundo. Na verdade era um truque que Foxy desenvolvera: sentar-se no último banco, o da janela, mas ocupando metade de cada banco, fingindo que ajeitava a mochila, enquanto dava tempo de esperar pela prima Vulpy. Porém, tinham de ser rápidas e sincronizadas, se quisessem ir sentadas e conversando durante o trajeto.
Foxy morava num bairro antes, também na periferia, mas era um pouco melhor (ou menos ruim), pois já tinha asfalto e esgoto, só faltava água encanada.
Embora mais velha, Foxy se dava muito bem com a prima Vulpy. Vulpy aprendia muito com a prima, que já estava no último ano do curso de pedagogia.
Foxy tinha pelos mais escuros, mais brilhantes. Seu nariz era mais afilado e sua boca, menor. Ficava menor ainda quando Foxy apertava os lábios. Ela tinha essa mania quando achava que deveria ficar quieta mais um pouco, ou antes de dar algum parecer,  ou emitir algum palpite.
 – Nossa, Vulpy, que olheiras! – exclamou a prima, arregalando os olhos e franzindo a testa – e seus olhos estão vermelhos e inchados, o que aconteceu com você?
 – Chorei a noite toda, Foxy, chorei demais, como a vovó costuma dizer “chorei a cântaros”.
 – Por causa da morte de seu irmão? – indagou Foxy, esperando uma resposta positiva, pois Vulpy ainda não havia superado o luto pela morte do irmão mais velho, que morrera ao ser atingido numa troca de tiros entre a polícia e os marginais. Até hoje ainda não ficou bem esclarecido de quem partiram os disparos, se da polícia, se dos bandidos.
 – Não Foxy, não que eu já tenha me conformado, mas ninguém vai trazer meu irmãozinho de volta mesmo – desabafou Vulpy, eu só ficava indignada quando diziam que ele estava no meio dos bandidos. Meu irmão dava um duro danado pra cuidar da gente e nunca se metia com maus elementos, nunca! A vida dele era trabalhar, estudar, e, quando tinha um tempinho, jogar futebol e tocar pandeiro no grupo de pagode. Ele era fã do David Luiz e tinha até deixado os cabelos crescer e feito uns cachinhos. Ele dizia que um dia seria como o David Luiz.
 – Então você chorou muito por causa da sua mãe? – arriscou Foxy, ajeitando-se melhor no banco e esforçando-se o mais que podia para abrir um pouco a janela.
Também não Foxy, a mamãe já melhorou um pouco. O derrame não a impede de mexer as mãos e falar, mas ela não consegue se locomover bem, por isso precisa de cadeira de roda.
 – Ela não merece isso, pobrezinha – lamentou Foxy, espremendo os lábios – mas não era um aneurisma que ela tinha?
 – É, Foxy, mas não dá pra ter certeza, porque ela ficou esperando muitos meses na fila do SOS e, quando finalmente foi atendida, disseram que perderam os exames dela e que deveriam refazer tudo. Parece que ela tinha que colocar essa pecinha parecida com uma mola.
 – Pecinha, Vulpy, indagou Foxy com ar de riso por causa da explicação simples da prima.
 – É Foxy, tipo, aquela molinha que eles colocam na veia das pessoas pra não estourar.
 – Entendi, Vulpy, mas eu acho que o nome da “molinha” é stent.
  – Seja lá o que for, Foxy, parece que isso teria impedido o derrame, mas os médicos do Sistema Organizacional de Saúde discordam.
 – E como está a tia, agora? – interessou-se Foxy.
 – Ela não conseguiu se aposentar, pois os médicos da perícia disseram que ela ainda pode trabalhar, porque, embora tendo de usar cadeira de rodas, ainda tem duas mãos.
 – Então por que você chorou tanto? Quer passar um pouco de blush pra disfarçar um pouco e ficar mais coradinha?
 – Acho que sim, me empreste e depois te devolvo, Foxy, agora o ônibus está balançando muito.
 – Eu consigo passar um pouco – insistiu Foxy, segurando a prima pelo queixo.
 – O que é isso na sua, orelha, Vulpy?  – espantou-se.
 – Eu queimei fazendo chapinha com o Babyliss.
 – Nossa, Vulpy, presta mais atenção, é muito perigoso. Mas porque você chorou tanto?
 – Eu sei mexer, é que me descuidei – justificou-se. De fato,  Vulpy manejava bem essas ferramentas, pois fazia um trabalho como cabeleireira e manicure nos finais de semana para ganhar algum dinheiro extra  e conseguir pagar a faculdade. Era habilíssima também com a tesoura, pois cortava tecidos na loja o dia todo e cortava os cabelos das clientes do bairro desde quando era mais jovem, ofício que aprendera com a mãe.
 – Vulpy, fala, menina, porque você chorou tanto? Será que posso ajudar? É a situação na faculdade?
 – Não, isso eu já resolvi, quer dizer, contornei, né?
 – O que você fez? Não me diga que trancou a matrícula – Indignou-se prima, elevando o tom da voz.
 – Não Foxy, eu mudei para uma faculdade mais barata, mas tive de esperar mais um ano.
 – E porque você esperou tanto?
 – Bom, prima, eu ia desistir, porque não estava conseguindo pagar a Universidade Materialista. A Materialista é muito cara. Eu insisti porque passei no vestibular, eles disseram que me dariam uma bolsa.
 – E deram?
 – Nada, Foxy. Eu conversei com os caras lá. Disseram pra eu ficar tranquila que iam me ajudar. Lembro muito bem, até citaram uma frase bonita do John Wesley: “Pregai expressamente em favor da educação...” Disseram que havia passado algum tempo, mas que se eu acertasse o que devia, me dariam uma bolsa no outro semestre. Eu peguei dinheiro do cartão de crédito, do limite do banco, dei cheques pré-datados... e disseram que iam me dar uma bolsa no outro semestre. Fiquei esperando, e daí me disseram que ficou faltando um documento e mandaram eu esperar de novo outro semestre. Eu não pude mais frequentar as aulas, o tempo passou e eles me processaram. Foxy, me ferraram direitinho. Peguei mil reais no cartão e a dívida agora já está em trinta mil por causa dos juros, sem contar o dinheiro do limite, meu nome está sujo e não posso mais usar cheques.
 – E por que você não tenta uma bolsa do governo?
 – Ah, Foxy, eu já tentei e eles disseram que a renda da minha família dava. Eu quis rir. Não me deram nada, mas o filho do vereador ganhou uma. Não sei quais são os critérios que eles usam, Foxy.
 – Que saco, Vulpy, não vou te perguntar mais por que chorou tanto, desenrola, carretel! – insistiu a prima, já demonstrando certa impaciência.
 – Ah, Foxy,  misturou tudo – respondeu desanimada. Primeiro porque não fui escolhida pra ser dançarina na banda de funk do MCGozador.
 – Aquele cheio de colares e joias caras, que já tem até um iate?
 – Esse mesmo, lembra da Mazoca? Então, me encontrei com ela; está super bem de vida: tem apartamento, carro, tudo de primeira, porque foi contrata para dançar na banda do MCGozador. Então ela me deu um cartão pra eu tentar também, disse que ia ter um teste.
 – Nossa, me conta, como foi?
 – Um desastre, Foxy, um caos...
 – Mas você dança bem, tem experiência com palco, o que aconteceu?
 – Bom, talvez tivesse sido melhor conversar diretamente como MCGozador, ele é muito humano e ajuda todo mundo, mas eu decidi fazer o teste. Fiz tudo certinho, tudo...
 – E foi difícil?
 – Nada, fácil demais; era só se agachar e cantar:             
 “tô ficando atoladinha, tô ficando atoladinha, tô              ficando atoladinha...”

Foxy quis rir, se esforçou para não soltar um risinho e espremeu os lábios, como de costume.
 – Então por que não te contrataram, Vulpy?
Vulpy desabou e começou a chorar copiosamente:
 – Porque – respondeu com as mãos no rosto – porque eles disseram que eu não tinha corpo, Foxy, que eu tinha pernas curtas e não tinha bunda e que meus peitinhos eram pequenos demais. Eu perdi essa oportunidade porque não tinha bunda e peitos – concluiu chorando de soluçar.
 – Ah, Vulpy querida, vamos lá. Pense bem fofinha, o tempo é cruel, logo  todo mundo vai ficar com a bunda flácida e murcha, cheia de celulite; os seios também vão murchar, cair e daí, como vai ser? Pensa nisso, Vulpy.
 – É, você tem razão, mas eu sou feia...ridícula, baixinha e uma tábua.
 – Não fala assim, Vulpy, você é uma raposinha linda e fofa. Todo mundo ia querer você. Pensa, amiga, você está se deixando levar pela ditadura da moda... você é tão inteligente... não percebe que eles ditam o padrão de beleza e a gente tem de seguir sem questionar? E mais uma coisa, fofinha – disse Foxy com o olhar cheio de ternura – bunda e peito todos têm, podem pôr até silicone, mas honestidade, persistência, coragem, ousadia, determinação, poucos têm, e esses valores são perenes e você esbanja tudo isso.
 – O que é perene, Foxy? – perguntou enxugando as lágrimas, mas prestando muito atenção no argumento da prima.
 – Ah, perene quer dizer uma coisa que dura muito, que não se acaba facilmente.
 – Vulpy já estava quase se rendendo ao argumento, mas teve outro acesso de choro.
 – Vamos, Vulpy, deixa de chorar menina, você não tem bundão nem peitões, mas é corajosa e persistente. Vamos, pare de chorar agora.
 – Mas teve mais uma coisa que me fez chorar, Foxy, além disso.
 – Outra coisa ainda, querida? O que mais?
 – Por causa de uma frase do David Luiz,  que  mexeu comigo.
 – Acho que você está projetando seu irmão no David Luiz, Vulpy.
 – Pode até, ser, esses jogadores da seleção parecem vizinhos, ou parentes, sei lá, gente como a gente. Por que você acha que o Brasil perdeu, Foxy, de quem é a culpa?
 – É difícil responder, Vulpy, mas eu acho que os jogadores eram sinceros e queriam vencer. Quem joga pra perder? Mas aí disseram que eles deveriam ser heróis, deveriam salvar o país, que se eles não ganhassem ia ter quebradeira, o Brasil ia afundar, o governo ia perder as eleições, ia ter uma revolução. Depois colocaram sobre eles o fardo de serem heróis, de substituírem o Neymar. Disseram que eles eram “penta” e a camisa da seleção era poderosa e aquelas cinco estrelinhas botavam medo nos inimigos e deram a eles a opção de vencer ou vencer. Quando eles perceberam que não eram o Neymar, que eram eles mesmos,  com suas fraquezas, e que não podiam ser quem não eram, e que a seleção não era onipotente, desabaram. Acho mesmo que tiveram uma pane.
 – É, também concordo, se bem que não ligo muito pra seleção mesmo.
 – Ah, Vulpy, lá vem você de novo com essa mania de desdenhar, você acabou de dizer que estava chorando por causa da Copa.
 – Não foi por causa da Copa mesmo. Vou resumir rápido: O pessoal da faculdade organizou uma visita a uma fazenda de uvas. A gente tinha de estudar o sistema administrativo da fazenda e, ao mesmo tempo, fazer um tipo de piquenique. Eu ainda não tinha vendido uma parte dos vales-transportes e dado o vale-refeição no supermercado para trocar por compras. Eu não tinha nada pra levar. Nem marmita eu levei. A única coisa que eu tinha comido durante o dia era macarrão Knnojo. Estava com muita fome. Cada aluno levou uma coisa pra comer: rocambole, bolos, patês, frios, torta de liquidificador, refrigerantes, iogurtes... e eu não tive nada pra levar. Então me afastei deles pra não perceberem e fui dar uma voltinha. Vi uma parreira cheia de uvas e fiquei com água na boca. O dia tinha sido difícil porque o oficial de justiça tinha intimado meu patrão a comparecer no fórum imediatamente. Meu patrão tentou explicar que não pôde pagar os impostos por causa das enchentes e por causa do quebra-quebra dos black-blocs. E que ele estava esperando o Refis para renegociar os impostos atrasados.
Então comecei a pular, pular, pular, mas não conseguia alcançar as uvas. Um carinha me filmou com o celular e postou no Youtube, Facebook e Google+; todos começaram a rir e o  vídeo se tornou um viral. Daí eu disse que não queria mesmo as uvas porque ainda estavam verdes
 – Nossa, Vulpy, mas aí já é bullying.
  É,  agora já estão tirando o sarro por três séculos. 
 – Ah, não exagera. Por que você pagou um mico desses?
 – Vulpy ergueu os olhinhos ainda inchados e vermelhos e fuzilou:
 – Você sabe o que é ter fome?
Foxy engoliu seco.
 – Você sabe o que é não ter nada pra comer o dia todo, ou ter de deixar a comida para os irmãos menores?
 – Foxy se rendeu por dentro e começou a desejar que Vulpy terminasse logo o argumento. 
 – E o que aconteceu, fofinha?
 – Quando a gente estava indo embora, um senhor alto e forte me segurou pelos braços e disse que queria falar comigo. Ele me levou a uma saleta e foi curto e grosso, disse que era gerente e tinha me visto tentar pegar as uvas. Eu estremeci e me lembrei daquela senhora de Mauá que tinha sido presa por um ano por roubar um pote de margarina. Tentei explicar, mas não achei palavras, então disse “porque eu estava com fome, senhor”. Ele pediu que eu o acompanhasse a outra sala. Eu tremi de medo já estava começando a fazer xixi. Então ele disse: “eu observei você  pulando e tentando pegar as uvas,  fiquei  muito comovido com seu esforço e perseverança e quero que você aceite esses presentes da nossa fazenda”. Foxy,  os olhos dele se encheram de lágrimas e ele prosseguiu dizendo: “Hoje, eu estava assistindo a uma entrevista do David Luiz, e fiquei comovido  com o que ele disse. Então quero que você leve essas caixas de uvas para você e para sua família". Então  me lembrei do      que o David Luiz disse e fiquei chorando a noite inteira.
- Ah, por causa da Copa, então?
- Não Foxy, por causa da miséria, da violência, da falta de  educação, da falta de saúde, da fome e da corrupção. Então  entendi porque o David Luiz estava tão triste.
- E qual foi a frase dele, Vulpy:
- Bem, ele disse:

“Eu só queria alegrar o meu povo que sofre tanto... Só queria ver meu povo sorrir”.

- Foi por isso que chorei a noite toda e não pela  derrota na Copa!






Gilson Marcon de Souza

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