sábado, 28 de novembro de 2015

ME PHOBEISTHE (A Rã e a Lebre)



Gilson Marcon de Souza

O recinto escuro, com paredes encardidas e placas de reboco se despregando das colunas de cimento, exalava um odor de mofo e bolor característico. A fumaça continua de tabaco queimando, em meio a outras centenas de pontas de cigarros lançadas a esmo pelo chão, impregnavam todo o ambiente, tornando o ar denso numa atmosfera acre e sufocante. O bafio da fumaça e do fumo curtido chegava mesmo a magoar as narinas sensíveis de quem tivesse a coragem de abrenhar-se naquele ambiente malcheiroso e infectante.
      Uma placa de papelão úmido, estendida no chão frio e recoberta de algumas almofadas emboloradas e puídas, servia tanto de cama como de pousadeiro. Era lá que Ranny dormia, comia e trabalhava. Era ali que ele passava a maior parte do tempo recostado, lendo algum livro, de preferência de ficção científica, mas também de física quântica, teoria das cordas, universos paralelos, modelo padrão, partículas subatômicas, experiências de quase morte, experiência fora do corpo, vampiros, duendes, elfos, super-heróis modernos, mangás, ânimes e aceleradores de partículas. Ranny, porém, se sentia extremamente frustrado por não saber bem matemática, sobretudo as equações, sem as quais ele não poderia trabalhar no seu novo projeto e aperfeiçoar-se se mais na linguagem c++.
            Ranny não se sentia totalmente satisfeito com seus projetos, a não ser pelo êxito que estava obtendo em memorizar tantos alfabetos quanto ele pudesse. Ele já havia decorado o alfabeto grego, hebraico, aramaico, árabe, cirílico; sem contar milhares de ideogramas chineses, caracteres cuneiformes, hieróglifos egípcios e maias. Em princípio, não achava muita utilidade no aprendizado desses sistemas de escrita, mas com o passar do tempo, percebeu que esses conhecimentos o ajudariam no aprendizado dessas línguas e estava persuadido de que esse exercício intelectual certamente já o estava ajudando à medida que progredia em seu algoritmo para desenvolver um motor de busca tanto intergaláctico como interdimensional. Por enquanto os resultados customizados preliminares e os filtros estavam ao seu favor.
Ranny era superpoliglota e podia se comunicar com vários amigos do mundo inteiro pela internet. Era isso que gostava de fazer nas horas que não estava trabalhando como avaliador de jogos on-line e videogames. Ele só não gostava de ficar esperando pelas respostas de seus interlocutores virtuais. Achava extremamente deselegante deixar as pessoas esperando por vários minutos pelas respostas. Achava que elas deveriam ficar verdes, ou melhor, que deveriam deixar seus apelidos em verde, se não estivessem dispostas a bater papo. Pois que ficassem vermelhas, sinalizando que estavam ocupadas, ou então amarelas, quando estivessem ausentes. Ele simplesmente odiava isso e decidiu excluir todos os amigos virtuais que não seguissem essa regra básica de etiqueta nos bate-papos.
Seu sonho era poder comprar um óculos de realidade virtual e poder testar os jogos em ambiente 3D, mas para isso ele teria de juntar muitos bitcoins nos sites que ofereciam pequenas tarefas.
Ranny se sentia faminto; precisava comer algo antes de sair, pois já havia planejado sua ida à loja de produtos eletrônicos com várias semanas de antecedência. Planejara tudo meticulosamente: quais ruas deveria percorrer; quais esquinas deveria evitar; em que beco escuro ele deveria se meter no caso de ser visto por alguma pessoa; qual deveria ser a melhor rota de fuga nesse caso; e, até mesmo, com que roupa deveria estar vestido. Semanas de planejamento. Nada deveria dar errado: ele não poderia ser observado por ninguém absolutamente. Por isso separou um sobretudo preto; um suspensório listrado; uma camiseta também preta, sem nenhuma estampa que pudesse chamar a atenção; um par de botas parecidas com as de caubóis e uma bermuda comprida, suficiente para cobrir suas pernas esguias até abaixo dos joelhos, mas deixando à mostra suas canelas.
Era um tanto encurvado, talvez pelos anos de atividades em frente ao computador e já com um pequeno abdome ressaltado, mas ainda mantinhas as pernas morrudas fortes. Não era amante de caminhadas, mas desde criança gostava de praticar saltos. Chegou até a ganhar uma medalha pelo primeiro lugar de salto em altura na escola e outra medalha pelo segundo lugar em salto à distância. É verdade que ele se preocupava com a saúde, por isso decidiu cortar um pouco das pizzas e hambúrgueres e continuar praticando saltos, mesmo que dentro de casa.
Já perto de completar vinte e dois anos, achava que deveria começar a cuidar mais de si; por isso decidiu cortar um pouco dos carboidratos e comer mais proteínas e continuar praticando saltos  ̶  largar o cigarro e o café, os pacotes de batatas fritas e salgadinhos ficaria para mais tarde.
A casa, ou melhor, a toca onde vivia, trabalhava e comia, estava repleta de fios, de tal modo que uma das tarefas que mais ocupava a sua atenção era separar cuidadosamente as teias de fios daquele verdadeiro emaranhado de cabos, pontas, plugues, tomadas, extensões. Ele não entendia esse mistério, qual seja, bastava levantar-se para atender ao telefone ou ir até o banheiro, que na volta os fios já estavam repletos de nós e laços  ̶  tudo embaraçado. Às vezes chegava mesmo a imaginar que os fios e cabos tinham vida própria e se emaranhavam propositalmente para deixar sua vida tediosa ainda mais difícil. Eram dezenas deles: fios de baterias, do mouse, do teclado, do fone de ouvidos, dos videogames em meio a outros tantos cabos e adaptadores de vários tipos. Se ele não os dispusesse na mais perfeita ordem, seria impossível identificar devidamente a que dispositivo pertencia tal cabo ou fio. Portanto, classificar e separar cada extremidade com seus respectivos equipamentos era uma tarefa fastidiosa, porém necessária.
Ranny não queria passar pela inconveniência de ter de sair para comprar um fio ou cabo novo para substituir algum que houvesse se rompido por torções inadvertidas. Um fio partido implicava uma incursão nova pelas ruas, e Ranny empregava todo o esforço possível para nunca jamais ter de sair de casa. Mas desta vez era inevitável – um copo cheio de refrigerante havia caído por todo o teclado e só não danificou os componentes internos de seu computador portátil graças ao salto certeiro que dera, segurando-o com precisão antes que entornasse aquele líquido totalmente e fizesse um estrago ainda maior. Mas não havia jeito: a solução era comprar pelo menos um teclado externo para poder continuar seu trabalho. Além disso, já estava em seus planos comprar, também, um ponteiro a laser.
Ranny estava ansioso para reproduzir a experiência das fendas duplas e precisava de um emissor de raio laser. Ele não entedia por que cargas d’água não havia colapso das ondas quando as pessoas as observavam nos vídeos que vira. Não deveria ser assim: se houvesse alguém observando, os padrões deveriam ser de partículas e não de ondas. Isso o intrigava e o deixava pensativo por horas. Ele precisava entender esse processo, porque havia conseguido interceptar várias palavras em seu motor de busca. Ele sabia que seu algoritmo estava funcionando, pois os resultados estavam dentro de um padrão lógico e seguiam um código binário. Tudo que precisava fazer era atribuir um fonema para cada símbolo que estava sendo formado, e ele estava perto de desvendar isso. O programa que desenvolvera para tentar atribuir os fonemas, vogais e consoantes aos códigos binários funcionou algumas vezes, e ele havia anotado padrões que indicavam para uma sequência lógica de um idioma, mas ficava intrigado, pois, como na experiência com as fendas duplas, só conseguia obter alguma mensagem quando estava observando o experimento e isso jamais ocorria enquanto seu programa estava rodando sozinho.
Já estava chegando a hora de sair; a loja estaria fechada, mas Lepo prometera estar lá para guardar caixas de produtos eletrônicos nos balcões, mesmo depois do expediente. Tudo que Ranny deveria fazer era bater e se identificar. Lepo dera sua palavra de que estaria dentro da loja para organizar as mercadorias.
Agora Ranny precisava comer alguma coisa. Estava faminto. Precisava comer algo e urinar. Ranny nunca saía se não fizesse isso. Foi ao banheiro e certificou-se de que havia urinado totalmente. Não podia deixar de expelir uma gota de urina sequer – não podia. Primeiro, porque ele não queria passar pelo constrangimento de urinar nas calças se passasse por algum tipo de situação ameaçadora; segundo, porque não queria contaminar ninguém com sua urina.
Não havia mais uma fatia de pizza sequer. Também não havia mais nenhum pacote de batatas frias e salgadinhos. Esse problema não era tão importante, pois ele poderia encomendar essas coisas pelo smartphone ou pela internet sem precisar sair, mas ele precisava comer algo. Ranny deu alguns passos para trás, colocou sua toca ninja e seus óculos escuros e quase caiu ao tropeçar no tabuleiro de RPG. Recobrou o equilíbrio, olhou fixamente para a parede e deu um salto abruto, porém certeiro, e virou-se imediatamente, esfregando o estômago com ar de satisfação e com a bocarra entreaberta, ainda por engolir metade de um grilo, cujas asas esganiçadas pararam de tremelicar e foram minguando até que o bicho todo fosse engolido totalmente sem que Ranny sequer o mastigasse. Era o seu dia de sorte, pois com mais dois ou três saltos, conseguiu capturar, com sua enorme língua distendida, uma mariposa desatenta e uma suculenta barata marrom.
Já estava se sentindo quase preparado para sair, caminhou até a porta, colocou a mão na tranca rústica de madeira forte, bem aparelhada e firme, e a puxou com força por várias vezes. Colocava a mão na fechadura bem trancada da porta, forçava a tranca e a voltava à posição de início novamente. A porta não se abria, até que se lembrou de um calço extra que havia metido firmemente sob ela  ̶  mas uma força parecia o impelir para trás. Tentou várias vezes, entrecruzou os dedos à frente dos lábios, respirou profundamente por vários segundos, ensaiou uma nova saída, mas voltou ao computador: teve a ideia de tentar mais uma vez deixar o programa rodando enquanto estivesse fora. Fixou os olhos na tela e digitou em um campo de pesquisa: “mensagem para a humanidade”.
Ranny era um exímio digitador, e a resposta veio quase na mesma velocidade com que era capaz de digitar, porém num padrão helicoidal semelhante a uma tira de DNA, embora com pares de sequência apenas binários. Ranny sentiu um calafrio percorrer lhe a espinha. Desta vez parecia ser uma mensagem clara. Bastava agora inserir os códigos no seu programa e esperar pela conversão. Repentinamente, os milhares de zeros e uns começaram a dançar freneticamente na tela, até que finalmente uma sequencia do que parecia ser duas palavras se formou. Ranny não demorou muito tempo para entender que se tratava de um idioma. Bastou que inserisse o resultado em uma biblioteca de fonemas, e, finalmente, o resultado saltou aos seus olhos atentos: ME PHOBEISTHE.
Um misto de curiosidade e satisfação quase o fez esquecer-se de que já era hora de sair e ele não mais podia protelar o seu egresso, mas seus pensamentos estavam quase todos voltados para o significado dos termos que acabara de surgir na tela de seu computador. Ranny quis acender um cigarro  ̶  ele sempre fazia isso como um rito de celebração quando sentia que obtinha alguma conquista, como vencer um oponente num videogame ou RPG, ou finalizar algum programa importante, ou escrever uma resenha para comentários de algum livro ou site, mas não havia mais nenhum. Vasculhou os bolsos de várias roupas e tentou achar algum cigarro perdido em algum canto, mas tudo o que encontrou foi um toco já meio embolorado e amassado e não hesitou em acendê-lo e aproveitar para inalar profundamente o restante de fumaça que aquele resto de cigarro pudesse ainda produzir.
Estava afoito para continuar suas pesquisas; tudo que precisava fazer agora era digitar os termos num motor de busca comum e estudar os resultados. Ele não podia esperar mais para sair  ̶  era pontualíssimo e não tolerava segundos de atraso sequer. Mas ainda teve tempo para fechar diversas janelas abertas na tela de seu computador, entre as quais vários sites que exibiam imagens cosplay e hentais. Ranny olhou para alguns hentais com um olhar cobiçoso, mas decidiu que aquela definitivamente não era hora para pensamentos lúbricos.
Assim que finalmente conseguiu abrir a porta maciça, seu coração disparou, sentiu cólicas, tremores; o rosto começou a suar, as mãos tremiam e os lábios perderam a cor. Ranny pensou em abortar seus planos, mas se fizesse isso não poderia dar andamento às suas pesquisas. Parecia que as laterais de seu crânio estavam sendo esmagadas por uma pressão insuportável. Sua têmpora parecia estar sendo comprimida por uma força descomunal. Ranny tinha a impressão de que a cada vez que saia estava diminuindo de tamanho, ou então as pessoas estavam crescendo. Sentiu-se enjoado e ansioso, e se não fosse por um resquício de autocontrole que ele ainda conseguia reunir, teria vomitado no momento mesmo em que pusera os pés para fora da porta.
A ansiedade que estava sentindo teria dado lugar a um terrível sentimento de pânico, se ele não tivesse se valido do pouco de controle sobre suas emoções, mas, a cada vez que saia, sentia que estava perdendo cada vez mais o domínio sobre seus sentimentos. A amplidão do espaço externo, as luzes das ruas, os faróis dos carros, os sons agudos pareciam estar distorcidos em um turbilhão de ruídos desconexos e imagens retorcidas num campo de visão afunilado. Parecia ter perdido a visão periférica e tudo que conseguia ver era um rasto de luzes alongadas e embaçadas em meio a um barulho ensurdecedor, mas o que mais levava o limite sua fobia quase indomável eram as pessoas: elas eram ameaçadoras. Ranny sentia pavor delas. Tinha medo de ser pisado, chutado, ridicularizado, mas, se pudesse escolher, preferiria o sentimento de rejeição e indiferença, embora isso também o magoasse. De qualquer maneira, preferia ser ignorado por elas a ser observado em suas atividades. Ranny sentia dificuldade em realizar qualquer tarefa se sentisse que alguma pessoa o estivesse observando. Por isso estudou bem o caminho que deveria percorrer para não precisar pedir informações ou direções.
Ranny respirou um pouco e tratou de ser o mais rápido que pudesse, preferindo percorrer locais mais escuros e perto de becos, travessas ou vielas, esgueirando-se por trás de placas de sinalização, lixeiras, paradas de ônibus ou qualquer outro obstáculo que pudesse lhe servir de um eventual esconderijo. Ter respirado um pouco o ajudou, e Ranny caminhava a passos largos, intercalados com saltos precisos, porém sinuosos. Ele preferia seguir sua rota de forma oblíqua, saltando de um canto a outro para evitar dar de topo com qualquer pessoa.
Já estava quase chegando à lojinha de quinquilharias eletrônicas de Lepo, e resolveu parar atrás de uma caçamba de detritos para respirar um pouco mais antes de entrar, mas isso não foi uma boa ideia. Ranny quase perdeu os sentidos ao sentir algo esfregar-se em suas costas e uma sensação quente é úmida percorrer-lhe o pescoço. Virou-se terrivelmente assustado para ver do que se tratava e conseguiu ver um rosto enorme, com olhos perquiridores e uma imensa língua que destilava uma saliva espessa e pegajosa. Ranny teve tempo de ver que se tratava apenas de um cachorro curioso que havia lambido toda a extensão de sua espinha e farejado seu corpo inteiro com um focinho inquiridor e gelado. Ranny teria urinado ali mesmo se não tivesse feito isso antes de sair de casa, mas conseguiu se esquivar daquele cão desencaminhado e errante, que parecia querer mais satisfazer sua curiosidade canina do que lhe causar algum mal. Não foi difícil para ele saltar para um local mais seguro, deixando aquele animal abelhudo e indiscreto encontrar o caminho do qual se desgarrara.
Sentiu-se, de certo modo, aliviado por vencer esta etapa. Já estava perto de conseguir entrar. Queria acender um cigarro, mas não havia mais nenhum e isso também o exporia ainda mais. Ficou preocupado por não ter cigarros, pois ele jamais entraria em um bar para os comprar. Mas sua preocupação deu lugar a certo alívio quando passou as mãos no peito e pôde tatear o volume de um maço de cigarros ainda fechado em um de seus bolsos. Sua ideia de deixar um maço escondido para o caso de alguma emergência deu certo. Talvez um pouco de nicotina lhe desse algum ânimo para prosseguir. Acendeu um cigarro e o tragou com tanta sofreguidão, que em menos de um minuto já havia fumado mais da metade e se dado por satisfeito, dispensando o restante e apressando os passos para logo bater à porta.
Ranny estava ensaiando o que dizer; não queria passar por um tolo. Limpou a garganta e tossiu e quis adotar uma postura de quem sabia exatamente o que comprar. Não queria que as pessoas o achassem estúpido, indeciso ou reticente. Queria comprar logo o que precisava, sair dali o mais rápido possível e voltar para o seu refúgio.
Não demorou até que Lepo abrisse a porta, mas a acolhida efusiva não o fez sentir-se mais calmo  ̶  pelo contrário. Ranny conhecia Lepo apenas pelos bate-papos da internet e nunca o tinha visto pessoalmente. Ficou imóvel quando viu que se tratava de uma lebre. Seu coração disparou, sua respiração tornou-se curta e ofegante. O ar lhe faltava e novamente começou a suar frio. Seu rosto parecia pegar fogo. Ranny não podia se controlar e seu corpo todo tremia. Ele queria se conter, mas quando viu que se tratava de uma lebre, se arrependeu profundamente de ter saído de casa; queria dar um passo para trás e sair correndo, ou pulando, mas ficou estático, imóvel, petrificado. Não conseguia se expressar e emudeceu. Ele sempre ficava desconcertado quando conhecia alguém.
Lepo era uma lebre alta, forte. Pelo tônus de seus músculos, era fácil depreender que se tratava de um jovem atlético e amante de exercícios físicos. Seus pelos castanhos, bem cuidados, também era evidência de que Lepo era um jovem cuidadoso com a aparência e, de certa forma, vaidoso. Lepo era amante de tudo que se relacionava com novas tecnologias, cultura popular, filmes de aventura e ficção científica, quadrinhos e RPG. Seus olhos avermelhados arregalaram-se, e suas pupilas se dilataram quando viu o estado de pânico e pavor de Ranny. Lepo apressou-se em fazê-lo entrar, puxando-o com força por imaginar que tivesse sofrido algum assalto ou que estivesse passando por algum problema de saúde. Pela respiração arfante e esbaforida, imaginou que pudesse estar sofrendo de um ataque de asma e logo tratou de acolhê-lo.
Ranny simplesmente não conseguia falar. Seus pensamentos embotados e sua respiração ofegante o deixaram prostrado, apenas tentando respirar e se refazer.
“Mas o que aconteceu com você, cara?”, indagou Lepo, com expressão de grande preocupação, cuidando para encontrar um assento qualquer para acomodar o amigo virtual, com quem mantivera horas de conversas on-line, mas com que ainda não havia se encontrado pessoalmente.
 “Você foi assaltado? O que houve?”
Ranny não conseguia reunir forças para falar.
“Calma, amigo, respire um pouco, sente-se aqui e relaxe. Seja lá o que aconteceu, você está bem agora”, afirmou Lepo, com voz firme e acolhedora.
A voz meiga, suave e gentil de Lepo fez com que Ranny recobrasse um pouco de forças e se sentisse encorajado para entrar e se assentar.
Ranny queria mesmo comprar tudo que precisava logo e sair dali o mais rápido possível.
“Desculpa, Lepo, eu não estava me sentindo bem; levei um susto com um cachorro que apareceu no meio do caminho”, tentou disfarçar.
“Eu entendo, esses cachorros vivem à solta e geralmente são mansos. Vivem a procura de algum resto de comida.”
Lepo conseguia falar naturalmente num tom de voz tão acolhedor e suave, que conseguia deixar Ranny mais calmo. Seu tom de voz era relaxante. Lepo era uma lebre alta, de gestos firmes e tranquilos, da mesma idade que Ranny. Sua atitude gentil e acolhedora logo foi fazendo com que Ranny se sentisse mais à vontade. Mas o que o deixou mais tranquilo foram os equipamentos eletrônicos. Ranny aos poucos foi se acalmando e se distraiu com os diversos deles. Se pudesse levaria todos.
“Quer um pouco de água?”, perguntou Lepo, colocando as duas mãos para trás e se inclinando para perto de Ranny. Lepo o olhava com atenção, abaixava o rosto e tentava observar se Ranny havia sofrido algum ferimento. Seu olhar atento deixou Ranny um tanto constrangido. Lepo o observava atentamente, de alto a baixo, como se estivesse o revistando com os olhos.
“Você tem vários jogos, não é mesmo Lepo?”, indagou Ranny, sentindo-se recobrado, mas recusando o copo de água.
“Sua loja é bem organizada!”
“Eu tenho de tudo um pouco. Não tenho os melhores produtos, mas são mercadorias boas. Eu preciso ter mercadorias que atendam aos bolsos e aos anseios das pessoas. Se eu tiver coisas muito caras, ninguém compra.”
“Mas como você conseguiu organizar esta loja, Lepo. Você ainda é tão jovem!”
“Sabe, Ranny, no começo foi muito difícil: ninguém me ajudava. Eu comecei vendendo coisas numa sacola, até que pedi para meus pais se eu poderia usar esta garagem velha. No começo eles não queriam, mas depois aconteceram uns lances e eles tiveram de mudar de ideia”.
“Que lances, Lepo?”
“Ah, deixa pra lá, Ranny, não quero, nem gosto, de me lembrar desse período tão difícil e cheio de trevas pra mim, esqueça isso”.
Os pensamentos de Ranny ainda estavam confusos, e ele quase não se lembrava do que queria comprar. Pensou um pouco e lembrou-se do teclado.
“Ah, sim”, gaguejou, “eu gostaria de levar um teclado bem macio”, fez questão de frisar, “e também um...., também um...ah, sim, um ponteiro a laser”
“Só isso mesmo que vai querer, Ranny?”
“Se eu pudesse eu levaria mais coisas, Lepo, mas meu dinheiro está curto.”
“E o que mais você gostaria de levar?”
“Acho que você não vai ter. Eu sempre quis um óculos de realidade virtual, queria tanto ter um desses!”, suspirou Ranny, vasculhando todas as estantes com os olhos e observando todos os produtos à mostra: consoles, vídeogames, smatphones, monitores...
“Nossa, cara, você tem uma coleção inteirinha de figuras de ações do Star Wars!”, suspirou Ranny.
“Sim, e tenho também vários bonecos do Senhor dos Anéis.”
Lepo pensou um pouco e disse:
“Você gostaria de ter um óculos de realidade virtual?”
“Sim, mas ainda não tenho grana para comprar”, lamentou-se, cabisbaixo.
“Ranny, pode ficar com minha coleção de figuras de ação e com meus bonecos. Eu gosto muito deles, mas sei que vão estar em boas mãos, se você ficar com eles”, afirmou Lepo, com o olhar perdido e com a voz meio embargada. “Eu gostaria muito que você ficasse com eles”.
“Não sei se posso aceitar, Lepo, você dever ter colecionado tudo isso com muito esforço e carinho.”
“Eu sei, Ranny, mas eu também preciso de mais espaço para colocar outras mercadorias, e sei que vão ficar em boas mãos. Bom Ranny, aqui está o teclado, as letras são grandes e as teclas são macias. Você me disse que tem as vistas cansadas, e este teclado tem letras grandes. É o último que eu tenho. Eu não tenho um ponteiro a laser, mas tenho este chaveiro com um laser bem concentrado.”
“Está perfeito, Lepo, é exatamente disso que eu preciso.”
“É para sua experiência com as fendas duplas?”
“É, Lepo, eu preciso entender melhor essa experiência – se é que alguém já conseguiu entender.”
“E por que você precisa entender isso, Ranny, o que isso tem a ver com o motor de buscas que você está criando?”
“Eu não sei, talvez isso me ajude a entender. Mas é que um fenômeno semelhante ocorre com as minhas experiências”, respondeu pensativo.
“Como assim, Ranny?”, insistiu Lepo, colocando uma cadeira mais próxima de Ranny e se esforçando para entender.
“É que quando eu estou na frente do computador, observando a experiência, eu consigo algum resultado, mas se eu me afastar dele, não consigo resultado algum.”
“E você já conseguiu algum resultado?”
“Consegui alguns, mas não tive certeza se era coincidência ou algum tipo de interferência. Mas hoje eu tenho certeza de que recebi uma mensagem.”
“Uma mensagem de onde, Ranny?”
“Isso eu não sei ainda, mas com certeza, de algum canto do universo ou de outra dimensão.”
“Que interessante, Ranny! Sabe, eu sempre digo que o universo fala com a gente o tempo todo, por meio de tudo: pode ser uma música, uma flor, um lago tranquilo, um animal, o barulho da chuva e até por uma pessoa”, brincou, “só que eu acho que ele fala baixinho, e a gente tem de prestar bem atenção no que ele está tentando dizer. Mas eu estou curioso para saber que mensagem você recebeu.
“Antes de eu sair, Lepo, tentei mais uma vez, e surgiu uma mensagem estranha”.
“Que mensagem? Cara, me conta, me conta...”
“A mensagem era: ME PHOBEISTHE.”
“E o que quer dizer?”, indagou Lepo, arregalando os olhos, coçando o queixo e eriçando as duas enormes orelhas.
Ranny notou o interesse de Lepo e respondeu, prestando atenção no movimento de suas longas orelhas:
“Eu ainda não sei, Lepo, não me parece uma expressão estranha, parece familiar, mas eu não me lembro de ter visto qualquer coisa parecida nos idiomas que eu conheço. Eu coloquei esses termos em alguns motores de busca comuns, não no meu, e não tive tempo de ver os resultados. Vou fazer isso assim que voltar”, respondeu Ranny, fazendo uma pausa.
“A não ser que...”, pensou mais um pouco, “talvez eu devesse transliterar essas letras latinas para vários outros alfabetos. É isso, Lepo, vou fazer isso imediatamente quando eu voltar.”
“Então depois me diga o que descobriu. Agora fiquei curioso.”
“Pode deixar, Lepo. Se eu conseguir decifrar, você será o primeiro a saber.”
“Ranny, eu queria mostrar uma coisa a você, cara. Acho que você vai gostar”.
“O que é, Lepo?”
“Você quer um óculos de realidade virtual?”
“Sim, eu sempre quis ter um, Lepo”.
“Então, cara, você mesmo pode fazer um”.
“Como é isso, Lepo?”, interessou-se Ranny,
“Olha só, você mesmo pode fazer o download de um molde, recortar uma placa de papelão e inserir as lentes. Então você vai poder jogar seus jogos num ambiente de realidade virtual: tudo em 3D. Além disso, imagine só: você vai poder viajar pelo espaço, por dentro do corpo humano, ver teatros e museus e interagir com pessoas - tudo virtual.”
Ranny ficou muito pensativo e interessado na proposta.
“Espere, Ranny, eu tenho um molde que baixei aqui, quer tentar fazer um?”, perguntou Lepo, fazendo um sinal com os dedos para cima e esfregando as mãos. Lepo abaixou-se e apanhou uma pasta, retirou alguns papéis, tesoura e cola e colocou tudo sobre o balcão.
“Quer tentar fazer um, Ranny?”
“Como é isso?”
“Basta você recortar nas linhas pontilhadas e depois colar e dobrar tudo. É fácil demais.”
Ranny coçou a cabeça e pensou um pouco. Achou a proposta viável e iniciou a tarefa recortando uma tira de papelão, mas começou a tremer e desistiu. Ficou nervoso por estar sendo observado. Ranny se atrapalhou e quase estragou uma tira inteira. Lepo o observou com compaixão, mas não o ajudou. Em vez disso o encorajou a prosseguir.
“Vamos, Ranny, você consegue, bastar ter cuidado de cortar nas linhas pontilhadas”, disse Lepo, com um tom de voz quase que monótono.
“Mas não precisa de lentes, Lepo?”
“É verdade, mas eu quero dar as lentes a você, Ranny, não se preocupe. Assim que acabar, vamos inserir as lentes e  tudo vai ficar prontinho.”
Ranny sentiu-se desafiado a terminar a tarefa, mas estranhou a gentileza de Lepo e ficou desconfiado de suas intenções. Não entendia por que Lepo estava cada vez mais gentil e imaginou que talvez estivesse querendo empurrar alguma mercadoria.
“Então quer dizer que eu vou poder interagir com as pessoas sem ter contato com elas? Isso seria bom demais, bom demais!”
“Sim, Lepo, você pode criar um avatar, pode conversar com qualquer pessoa de qualquer lugar do mundo, além de poder jogar também”.
“Eu gostaria tanto de poder interagir com as pessoas deste modo, Lepo, é meu sonho, é tudo que quero”, suspirou Ranny com o olhar distante e perdido.
“Por que você quer interagir com as pessoas desta maneira, Ranny?”
“Acho que posso confiar em você, Lepo. Você é um cara Legal. Acho que posso me abrir com você”.
“Claro que pode, Ranny.”
“Sabe, Lepo, eu tenho medo das pessoas, tenho pavor, tenho pânico, verdadeira fobia. Eu não consigo me relacionar com elas”, disse, Ranny, com os olhos cheios de lágrimas.
“Você não gosta das pessoas, Ranny?”
“Não é isso, não é isso. Na verdade o que eu sinto por elas é uma mistura de amor e medo. Poderia resumir assim: um forte desejo de ser aceito por elas e um forte medo de ser rejeitado. Então, se eu tivesse um óculos desses, poderia ir a qualquer lugar virtualmente. Poderia falar com as pessoas, interagir come elas, sem me preocupar.”
Lepo reclinou-se na cadeira, apoiou o rosto com a mão direita, inalou todo ar que pôde e pensou por alguns instantes. Ele não sabia o que dizer.
“Você sempre sentiu isso, Ranny, sempre se sentiu assim?”
“Bom, quando eu era criança, eu não gostava de esportes coletivos. Não gostava de participar de atividades com outros caras. Eu preferia coisas que eu pudesse fazer sozinho, como andar de skate, soltar pipas, saltar, ler... essas coisas, mas eu não sentia tanto medo. As pessoas me achavam  esquisitão e brincavam comigo. Elas me chamavam de sapo lelé, sapo chulé, sapo mané e gostavam de me chutar. Mas eu não me importava muito com isso. Só ficava chateado quando me chamavam de sapo. Eu não sou sapo, cara, eu sou rã!”
“Eu sei como é isso, Ranny, também fico chateado quando me chamam de coelho”.
“Mas quando eu estava ficando adolescente, e comecei a entender mais as coisas e fiquei muito triste com um lance”.
“Que lance, Ranny?”
“Uma vez, eu estava treinando saltos numa cama elástica, daí um  carinha se aproximou de mim, interessado no que eu fazia. Ele queria aprender a saltar e quis conversar e fazer amizade. Ele se aproximou de mim sem medo, e logo foi puxando conversa. De repente, a mãe dele se aproximou e disse umas coisas que me magoaram muito. Depois disso eu fiquei muito triste e mais recolhido.”
“E o que ela disse, Ranny?”
“Ela começou a gritar com ele e disse assim: ‘Filho, sai de perto desse sapo nojento! Você não sabe que esse bicho é venenoso? Não sabe que se ele mijar nos seus olhos, você vai ficar cego?’”
Lepo se limitou a balançar a cabeça de um lado para outro, em sinal de reprovação, com os olhos cheios de lágrimas, as quais tentou enxugar, esfregando os olhos com as duas mãos e virando a cabeça de um pouco para o lado.
“Depois disso”, prosseguiu, “eu comecei a achar que as pessoas não gostavam mesmo de mim. Eu fiquei convencido de que talvez eu fosse mesmo venenoso. Então comecei a evitar as pessoas e pensar nisso. Achei que eu pudesse fazer mal a elas com algum tipo de veneno que talvez eu tivesse,  e, ao mesmo tempo, achei que as pessoas também poderiam me fazer algum mal por causa do meu veneno. Então, eu fiquei com medo de fazer algum mal a elas, e com medo de que elas me tratassem mal”, tentou explicar, Ranny, confuso em seus pensamentos e atropelando as palavras.
“Que bobagem, Ranny, em primeiro lugar, você não é sapo, você é rã. Em segundo lugar, rãs não têm veneno.”
“Talvez eu seja um tipo de rã venenosa, Lepo. Mas, mesmo assim eu ainda conseguia sair de casa e me relacionar com as pessoas. Até que, então, aconteceu uma terceira coisa”, disse Ranny com um olhar melancólico e com o rosto triste. Sua feição mudou e um semblante de angústia e prostração transfigurou sua fisionomia.
“Acho que devo dobrar nesta marca, certo, Lepo?”
“Exato, Ranny, esta é a última dobradura; agora basta colar, mas antes vamos inserir as lentes”, respondeu Lepo, coçando o rosto.
 “Eu só tenho dúvida sobre a posição das lentes, Ranny, não sei se há uma lente é para o lado direito e a outra, para o esquerdo, mas vamos tentar assim mesmo, se não der certo, a gente inverte.”
Assim que o dispositivo estava  pronto e bem ajustado, Lepo fixou o celular nos encaixes e  ajustou a engenhoca sobre o nariz e começou a exclamar em voz alta: “Uau, uau, deu certo, cara, que da hora, que coisa extraordinária, parece mesmo que a gente está lá dentro!”
“Deixa eu ver, deixa eu ver, cara?”, entusiasmou-se Ranny com um brilho nos olhos.
“Espera, você precisa instalar um programa no seu celular”, explicou Lepo, tomando o telefone móvel de Ranny de suas mãos e já digitando várias palavras e apertando algumas teclas com apenas os dois polegares e  com rapidez inacreditável.
“Pronto, Ranny, agora pode olhar”.
Ranny ajustou o que parecia ser uma caixa de papelão quadrada no rosto e começou a girar a cabeça de um lado para o outro. Olhava para cima, para o chão, inclinava a cabeça e  esquivava o corpo, como se estivesse na iminência de ser atingido por algum artefato.
“É legal demais, Lepo, que  extraordinário, que cenário lindo! Parece ser uma casa abandonada ou um castelo! Olha só, cara, dá pra ver um livro em cima de uma mesa! Olha, cara, lá fora tem um penhasco e um jardim! Dá pra ver o mar  e um navio. Agora estou dentro de uma nave espacial e dá pra ver os planetas e as galáxias. Cara, passou um cometa bem pertinho da nave!”
Ranny e Lepo passaram vários minutos estupefatos com o resultado e testando vários cenários virtuais, quando Lepo colocou o experimento de volta no balcão e disse:
“É seu, Ranny, estou feliz em saber  que você gostou e isso vai deixar sua vida mais alegre.”
“Obrigado, Lepo, não sei como agradecer, era isso que eu queria”.
“Mas qual foi a terceira coisa que deixou você mais chateado, Ranny?”
Ranny engoliu seco e tentava achar uma linha de raciocínio, enquanto prestava atenção nas orelhas irrequietas de Lepo.
“Quando eu tinha uns dezesseis anos, quase dezessete, eu ouvi falar que muitas Lebres estavam deprimidas e tristes; muitas delas estavam se atirando num lago. Então eu fiquei pensando nisso. Uma vez,  havia escurecido e eu estava passando perto do lago, quando vi uma Lebre pensativa e triste. Ela estava cabisbaixa a  abatida. Então eu me aproximei e tentei conversar.”
Lepo parou de mexer as orelhas e se interessou no assunto.
“Começamos conversar, Lepo, e aquela Lebre estava disposta a pular no Lago: ela disse que a vida dela estava confusa, que as coisas não davam certo para ela e que, por mais que ela tentasse, parecia que sua vida estava encoberta por nuvens negras e densas e que ela não podia entender mais nada nem raciocinar direito. Então ela disse que só restava pular no lago e acabar com aquele sofrimento.”
            Lepo continuava a ouvir atentamente cada detalhe.
            Eu falei com ela, fiz tudo que podia pra  tentar tirar essa ideia da cabeça dela, mas ela estava irredutível. Disse que já tinha tomado aquela decisão e que estava a ponto de desistir de tudo. Então eu estendi minha mão e consegui a segurar pelo braço. Eu não sabia o que fazer. Ela já estava com um pé em um precipício. Eu não conseguia mais segurar o braço dela. Estava ficando cansado. Queria ter argumentos, queria falar, queria ter mais forças para segurá-la. Eu só conseguia dizer  a ela: ‘Não tenha medo, não tenha medo, amigo’, mas ela estava escorregando. Então eu me lembrei da letra de uma canção muito bonita. Eu quis cantar para aquela lebre, mas minha voz estava sufocada, pois eu estava nervoso e cansado. Então eu consegui falar um trecho da música, mas eu não aguentei mais. Então meus braços estavam lisos e molhados e  ela  escapou das minhas mãos. Eu vi  seu corpo  se revolvendo na água. Vi suas orelhas, com as pontas pretas, girando num tipo de redemoinho e se afastando. Eu mergulhei na água,  tentei nadar, mas quando  tirei a cabeça para fora da água, ela já tinha desaparecido naquele turbilhão de água, e eu a perdi de vista, quando estava chegando perto da cachoeira.
            “Lepo ouvia tudo atentamente, com olhar de compaixão e os olhos marejados de lágrimas.”
            “Sabe, Lepo, o que mais me dói nisso tudo é que eu me sinto culpado. Eu não era um profissional e não sabia lidar com isso. Não deveria ter ido lá naquela noite. Às vezes, fico pensando que deveria ter segurado  sua mão  por mais um pouquinho, que deveria ter tido um pouco mais de força. Outras vezes, fico pensando que eu deveria ter falado mais coisas, ou ouvido mais.  Eu deixei o cara escapar, Lepo, e ele se foi. Não sei nem o nome do cara. Nunca mais o vi. Ele deve ter caído na cachoeira”, sentenciou Ranny, banhado em suor e trêmulo. Seu corpo estava tendo espasmos musculares fortes, ele se esforçou para continuar.
            “Às vezes, fico imaginando que se eu tivesse o poder de andar sobre as águas, eu teria ido atrás dele e o salvado.”
            Ranny não mais se conteve e começou a chorar compulsivamente.
            Lepo  ficou em silêncio por alguns instantes. Depois se  aproximou de Ranny e o segurou pelas mãos. Ranny começou a chorar e se contorcer na cadeira. Chorava amargamente e num tom alto.
            “Lepo, quero te dizer uma coisa: você ajudou esse cara”.
            “Ele se foi, Lepo, eu o vi sendo levado pela correnteza e sumir no escuro da noite.”
            “Você o ajudou sim, Ranny, teve a intenção de  salvá-lo”.
            “Mas eu não consegui salvar o cara”, insistiu, agitando o corpo todo e se retorcendo cada vez mais, “a água o levou”.
            “Ranny, você não deve se sentir culpado por isso.”
            “Mas ele se foi, e eu  deveria ter feito algo mais...”
            “Ranny, nem sempre os médicos conseguem salvar todo mundo, mas eles fazem a parte deles. Já pensou se eles desistissem de tentar salvar os outros?”
            “Tudo que eu queria era poder caminhar sobre as águas, como Jesus Cristo”
            “Ranny, você não pôde caminhas sobre as águas, mas você foi capaz de realizar outros milagres. E todas as pessoas são capazes de realizar esses milagres.”
            Ranny  chorava copiosamente e  recobrou um pouco de forças para perguntar:
            “Que milagres?”
            Ranny, você não pode caminhar sobre as águas, como Cristo, mas você se aproximou da lebre, conversou com ela, a animou e estendeu suas mãos, entende?
            “Sim, mas quais são os milagres?”, insistiu.
            O milagre de se aproximar das pessoas quando elas estão se sentindo nas trevas, o milagre de conversar e falar com elas, o milagre de as encorajar para não terem medo e o milagre de estender as mãos, Ranny, e você fez tudo isso”,  disse Lepo, apertando suas mãos firmemente.
            “Mas eu não consegui salvar o cara, Lepo, eu fracassei, não adiantou nada.”
‘           “Você conseguiu, sim Lepo, claro que conseguiu”.
            “Como você pode ter certeza disso”, indagou Ranny, tentando controlar os soluços e chorando amargamente. Lágrimas cálidas rolavam de seus olhos inchados. 
            “Como você pode ter certeza?”
            “Ranny, relaxe, um pouco, tente se recostar na cadeira”, propôs Lepo, “fique com a coluna reta e respire bem fundo, você vai ficar bem. Não tenha medo, cara, eu estou aqui com você. Segure minha mão”.
            Quando Lepo segurou Ranny pela mão, ele reviveu todo o episódio com a Lebre e perdeu o controle total de seus sentimentos. Desta vez, ele  se atirou de bruços no chão e só conseguia chorar.
            Lepo achou melhor não dizer nada e deixar que Ranny extravasasse seus sentimentos. Depois de alguns minutos, Lepo retornou o diálogo e disse:
            “Ranny, coloque uma mão no peito e outra no diafragma e respire bem. Vamos, cara, respire bem profundamente. Agora prenda a respiração por alguns segundos e exale bem de vagar. Você vai se sentir bem, cara, confie em mim, estou aqui com você.”
            Ranny  lentamente começou a se recuperar depois desses momentos catárticos. Sua respiração parecia ter voltado ao normal e ele sussurrou:
            “Eu não consegui salvá-lo, eu não consegui salvá-lo, ele se foi...”
            “Ranny, quero dizer mais uma coisa: você não teve medo e se aproximou daquela lembre quando todas as outras rãs ficaram com medo e se afastaram”.
            Ranny o interrompeu mais uma vez e continuou:
            “Eu não tive forças, eu não consegui, eu fracassei, ele se foi e eu não consegui salvá-lo”.
            “Conseguiu, Ranny, você o salvou sim”, insistiu.
            “E como você pode estar tão certo disso. Lepo?”
            “Porque a Lebre era eu, Ranny, aquela lebre a quem você estendeu a mão era eu.” Desta vez foi  Lepo que começou a chorar sem parar. “A lebre que você tentou salvar era eu...”
            Ranny ficou emudecido e perplexo.
            “E como você sabe que era eu?”
            “Acho que você consegue se lembrar da letra desta canção, Ranny”:

‘Eu posso ver claramente agora, a chuva passou. Posso ver todos os obstáculos na minha frente. As nuvens negras que me cegavam se foram. “Será um brilhante dia de sol”

“Ranny olhou fixamente para as orelhas atentas de Lepo para os seus olhos, e num gesto quase que automático, continuou citando a letra da canção”:

“Acho que agora eu posso conseguir. A dor se foi. Todos os sentimentos ruins desapareceram.”

Em seguida, os dois recitaram em uníssono  a sequencia:

“Eis o arco-íris pelo qual eu rezava. Será um brilhante dia de sol!”

Depois disso, ambos se abraçaram e choraram por longos minutos.
     Os dois se sentiram aliviados. Era como se tivessem deixado verter todo  sentimento de angustia, amargura e tristeza.
Lepo enxugou as lágrimas e ajeitou as mercadorias  e o óculos virtual de papelão que haviam feitos numa embalagem bem bonita.
Quando Ranny estava para sair, o fez  se lembrar da coleção de figuras de ação e dos bonecos.
“Ranny, agora estarei sempre aqui. Antes que você vá, lembre-se de quando me disse para eu não ter medo. Agora quero que você pense nisso também. Sei que com o tempo você vai ser capaz de vencer cada medo, mesmo que isso leve algum tempinho”.
“Eu sei Lepo, mas você pode me acompanhar até minha casa?”
“Claro Ranny, eu vou estar sempre por perto para tudo que precisar”
Assim que Lepo deixou Ranny na porta de sua casa, ele entrou correndo para ver o resultado de suas pesquisas. Não viu nada de extraordinário e já ia  dar tudo por encerrado, quando se  lembrou de transliterar as letras latinas para outros alfabetos.
Depois  da transliteração, o resultado da pesquisas forneceu várias ocorrências, dentre  as quais uma chamou  a atenção de Ranny:
ME PHOBEISTHE - idioma detectado: Grego Koinê.” Significado:                         

            Não tenham medo!