quinta-feira, 15 de maio de 2014

Cara Roxo que Come Gente (na periferia de Santo André)




Parece que a moda hoje em dia é “accent reduction”. É aí que a porca torce o rabo: eles quem, sotaque de quem?
Estava interpretando um grupo de estrangeiros num restaurante; eu e mais dois amigos colegas intérpretes, os dois excelentes profissionais: um americano e o outro brasileiro, com um perfeito inglês britânico. 
            Estávamos falando sobre o modo de falar, gesticular e sotaques. Eu queria saber se meu inglês era americano ou britânico, e eles me responderam: ah, Gilson, seu inglês é brasileiro!
            Outro americano nos disse que ele era de Arizona, mas ele não tinha sotaque do Arizona porque havia se mudado para um estado no norte, e falar com sotaque sulista lá soaria como uma pessoa “dumb”.
Meu amigo intérprete, com sotaque britânico, disse que na própria Inglaterra havia esse tipo de preconceito.
Eu disse:
 “Mas, se mesmo lá  alguém de outro lugar é considerado idiota por ter um sotaque diferente, e se for um estrangeiro, então?"
Outra Americana, ouvindo a conversa, me tranquilizou e disse:
“Os americanos adoram sotaque britânico e sotaque brasileiro”.
 Não sei se ela quis ser política e amainar os ânimos, mas ela parece ter dito isso com convicção.
 Perguntei por que gostavam desses sotaques. Ela respondeu: “o sotaque britânico tem um ar de aristocracia e o sotaque brasileiro é sexy”.
Pensei sobre isso e descobri que estamos falando mal dos outros, mas fazemos o mesmo aqui mesmo no Brasil. Você já ouviu alguém apresentar um telejornal com sotaque nordestino? Já viu algum apresentador de algum programa de âmbito nacional com um sotaque gaúcho?
Talvez, sem a televisão e os meios de comunicação modernos as diferenças regionais seriam bem mais diferentes ainda.
Num mesmo país antigo, entre um pequeno povoado e outro, onde não havia  meios de comunicação, as diferenças eram maiores. O preconceito contra pessoas com sotaque diferente já existia no tempo de Cristo. Quando viram São Pedro por perto, suspeitaram que ele fosse um dos discípulos por causa de seu sotaque galileu.
Estava pensando sobre  um exemplo para expressar o que estou pensando e logo me veio à mente quatro pessoas famosas provenientes de Santo Andre: Adoniram Barbosa, Danilo Gentili, Dani Calabresa e Lucélia Santos.
Todos são de Santo André, ou moraram aqui, mas qual é o sotaque característico de Santo André? Como as pessoas falam por aqui? Parece que há sotaques bem diferentes entre essas pessoas famosas.
Não, a gente ouve esses tipos de sotaque bem aqui em Santo André mesmo.
Vamos começar com Adoniram Barbosa, que, aliás, parece ter entendido muito bem esse aspecto do sotaque. Ele foi muito criticado por compor seus sambas do modo como o povo falava. A elite intelectual paulistana ficava horrorizada com aquele “português macarrônico e sofrível”, mas era assim que o povo falava.
Meu avô era filho de italianos e conhecia o Adoniram quando ele morava em Santo André. Ele falava com aquele sotaque dos sambas do Adoniram.
Minha mãe, uma geração depois, fala bem parecido com a Dani Calabresa, que, embora mais nova que minha mãe, deve ser neta ou bisneta de italianos.
Minha geração fala de modo mais parecido com o Danilo Gentili.
A Lucélia Santos tinha um sotaque mais padronizado, mais parecido com um português padrão, talvez por ser uma atriz de abrangência nacional e internacional.
Nosso jantar com os estrangeiros continuou. Mudamos a conversa e eu dizia dos meus hobbies: rock antigo (não sou tão velho assim, mas adoro rocks antigos e músicas dos anos 50, 60).
A americana deu um salto, arregalou os olhos e disse:
“Eu também adoro rock antigo”
 Ficamos entusiasmados. Depois de umas taças de vinho e algumas caipirinhas estávamos cantando:  “Purple People Eater, please don’t eat me”, na mesa do restaurante.
 Na pressa eu traduzi como Comedor de Gente Roxa, mas meus colegas intérpretes me corrigiram: “Comedor Roxo de Gente...”
Minha interlocutora americana veio ao meu socorro e disse:
“Quando Sheb Wooley fez esse rock, em 1958, mesmo os locutores se confundiam e não sabiam se era o monstrinho que era roxo e comia gente ou se ele é que gostava de comer gente roxa, por isso que até hoje o monstrinho aparece pintado de roxo”.
Mesmo assim é estranho. “O que quer dizer isso?” perguntei para a senhora americana?
Ela respondeu:
“Era uma lenda urbana, o Purpble People Eater” era um monstrinho de voz gutural que assustava as crianças que não se comportavam bem”.
Eu tinha tentado traduzir esse rock há alguns meses para um amigo do Skype. Estava encontrando certa dificuldade não tanto com a tradução, mas de expressar com mais fidelidade o que estava por trás da letra fria. Como traduzir um personagem de uma lenda urbana dos anos 50 do sul dos Estados Unidos?
 Comecei pesquisando um pouco mais e descobri que o tal monstrinho era algo como o “homem do saco”, o “bicho papão”, ou a mulher loira, com algodão na boca, que aparecia nos banheiros das escolas, ou a própria Cuca.
Começa a refletir uma ética WASP, a ética do trabalho duro. Todos deveriam odiar o Purple People Eater porque ele não era dado ao trabalho, era moralmente moroso, preguiçoso e odiava as pessoas. No fundo era meio devasso.
Nesse período, nos Estados Unidos, pela primeira vez os adolescentes estavam tendo poder de consumo e começaram a se rebelar contra certos valores tradicionais.
Enfim, como traduzir uma letra dos anos 50, de um compositor WASP de Oklahoma, para um adolescente da periferia de Santo André de 2014, que já fala diferente de Adoniram Barbosa, Dani Calabresa, Danilo Gentili e Lucélia Santos?
Meu sobrinho, de uma geração mais eclética, com mais misturas, mais migrantes nordestinos e menos italianos, quis saber o que eu estava ouvindo.
Tentei explicar, disse que era um rock antigo muito engraçado e comecei a traduzir. Ele não ficou muito interessando e foi ouvir funk.
Então tive a ideia de traduzir no jeito que ele falada, ou seja, do jeito como a geração mais nova de andreenses fala, mais especificamente, na periferia de Santo Andre. Depois de ler pra ele a nova tradução, ele me disse:

“Tio, isso parece funk”, e saiu rindo muito da estória, que você pode ver logo abaixo,  depois do vídeo:


            

Bem, eu vi o bagulho vindo do céu.
Tinha o um chifre enorme e um olhão.
Me deu um cagaço e eu disse: “caraca, mano,
Acho que é o cara roxo que come gente!”

Era o cara roxo que come gente,  que tinha um olho só, um chifre só e que vinha voando.
Mó bizarro, mano,
Um olho só!

Bom, o bicho aterrissou e ficou brilhando numa árvore.
Daí eu disse: “seu Cara Roxo que come gente, num me come”.
E ele disse assim, com uma voz bem ríspida:
"Suave, nem ia rolar de eu te comer porque você é muito tosco.”

“Era um comedor roxo de gente que tinha um olho só, um chifre só e que vinha voando.
Mó bizarro, cara,
Um chifre só”.
Dai eu falei: “o, seu Cara Roxo que come gente, o que tá pegando?”
Ele disse: “é comer gente roxa e isso é da hora,
Mas num fui pra isso que eu vim pra terra não.
É que eu queria arranjar um trampo numa banda de rock!”

Putz, que alívio! Rock and roll, cara roxo que come gente e voa…
Pé de pombo, estropiado, cara roxo que come gente...
Eu disse para ele: “Veio, a galera aqui usa shortinho cavadão,
Que da hora, uau!”

Daí, o cara pulou da árvore e começou a brilhar no chão;
Começou a dançar rock e agitar.
Era uma música aloprada com uma melodia irada. 


"Wop bop a lula wop bam boom"

Putz, que alívio! Rock and roll, cara roxo que come gente e voa
Pé de pombo, estropiado.
Eu gosto de shortinho cavadão, seu Cara Roxo que come gente
Que da hora,  seu Cara Roxo que come gente!”

Bom, dai ele vazou, tá ligado?
E num é que o cara apareceu  na TV ontem  à noite?
Ele tava tocando  e agitando a galera,
Tocando rock pelo chifre   que ele tinha na cabeça.


Tequila


Gilson Marcon de Souza




Um comentário:

  1. Tradução perfeita de uma letra até certo ponto difícil... parabéns!

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