domingo, 10 de agosto de 2014

Dr. Athanasios, a Vida Eterna e o Dia dos Pais



                                                           Gilson  Marcon de Souza

Extremamente compenetrado, Dr. Zeus Athanasios era um médico sempre sério e um requisitado cientista, cujo trabalho era dividido entre o seu laboratório de pesquisas genéticas e o hospital Cruz Celta.
Seu semblante austero e sério lhe conferia a alcunha de “o homem que nunca sorri”. Nunca sorria mesmo, mas não que fosse um homem triste, apenas achava que devia manter um ar de seriedade no ambiente de trabalho.
Homem metódico e disciplinado; tudo deveria estar no lugar certo. Cada objeto, cada anotação, cada livro... tudo deveria estar na mais perfeita ordem.
Não se sentia à vontade quando as pessoas riam do resultado de suas experiências genéticas e ficava extremamente desconsertado quando os jornalistas inferiam que ele gostava de brincar de Deus.
Os cabelos bem negros e olhos grandes, levemente puxados sobre o osso malar, nos lados opostos ao nariz, era antítese do que pode ser descrito como olhos amendoados. Também diziam que eram parecidos com olhos de estátuas gregas, o que fazia sentido, pois, embora nascido no Brasil, seu pai era de Atenas e sua mãe, de Tessalônica.
Nos corredores, às escondidas, as meninas do laboratório comentavam sobre sua mais recente entrevista e diziam que o apelido dele deveria ser “deus grego”, não só por causa do título sutilmente irônico da matéria do jornal, mas por causa de sua beleza. Já com sessenta e cinco anos completos, não aparentava mais do que trinta anos.
Dr. Zeus Athanasios não estava se sentindo particularmente inspirado para terminar de escrever seu mais recente artigo sobre o resultado de suas pesquisas com serpentes transgênicas. Por mais que se esforçasse, seus dedos pareciam imóveis. Lia mais do que escrevia. Apagava cada parágrafo e não conseguia encontrar uma linha de pensamento. Finalmente, desistiu e achou que aquela manhã não era favorável para terminar seu artigo e achou que seria mais apropriado dar-se ao luxo de relaxar um pouco e estender sua conversa com o Rev. Rodolfo Lemos, o capelão do Hospital Cruz Celta.
Embora ateu convicto, Dr. Athanasios se divertia com as estórias engraçadas do Rev. Rodolfo, mesmo que nunca risse.
Rev. Rodolfo bem que poderia ser considerado um matuto paranaense. Era um homem magro, baixo, já beirando os setenta anos. Sua pele, repleta de sardas e manchas, era resultado de um bronzeamento involuntário e agressivo, indício de uma pessoa que havia trabalhado por muitos anos fustigada pelo sol. Parecia ser o oposto do Dr. Athanasios: sempre sorridente e falante, nunca lembrava onde havia deixado os óculos ou seus livretos de literatura devocional, os quais distribuía fartamente não só entre os pacientes, mas a qualquer pessoa que julgasse estar precisando de uma palavra de conforto ou ajuda espiritual.
Apesar da formação diferente, ambos eram extremamente polidos e cultos. Rev. Lemos era amante da língua grega, idioma que sempre apreciou e que havia estudado no seminário de teologia.  Dr. Athanasios, é claro, falava grego fluentemente.
Um ritual que ambos concordavam em seguir estritamente era definir os termos antes de qualquer conversa. A única diferença era que o Dr. Athanasios o fazia vagarosamente, enquanto sorvia uma xícara generosa de chá verde, ao passo que o Rev. Lemos não tinha piedade alguma de sua língua e sempre a queimava enquanto bebia, com certa sofreguidão, sua pequena xícara de café quase escaldante, bebida que aprendera a apreciar devido aos longos anos de trabalho na lavoura de café antes de entrar para o seminário.
A conversa, desta vez, tinha como tema a palavra “psique”. Dr. Athanasios prosseguiu e pediu desculpas por não estar sendo muito atencioso.
 – Perdão, reverendo, – desculpou-se o médico enquanto tentava prestar atenção na rotina dos atendimentos – preciso ficar de olhos bem abertos. O senhor sabe, depois que depredaram nosso laboratório e soltaram nossos animais de pesquisa  tivemos um prejuízo incalculável.
 – Imagino, doutor, – respondeu o clérigo enquanto bebericava mais um pouco da bebida fumegante – deve ter sido um prejuízo incalculável, muito dinheiro perdido...
 – O prejuízo maior não foi tanto financeiro, reverendo, mas anos de trabalhos desperdiçados, anos – indignou-se – havia pesquisas importantes sobre leucemia, câncer, diabetes... Estávamos bem avançados com a pesquisa sobre diversos tipos de protozoários, sobretudo tropicais, e o próximo passo seria o teste de protozoários alterados em macacos.
 – Por que cargas d’água o senhor acha que fizeram isso, doutor?
 – Não sei, reverendo, respondeu Dr. Athanasios com o olhar perdido e ajeitando um estetoscópio debaixo da gola de um jaleco impecavelmente branco – eu também não entendo, alguns deles me chamaram de Dr. Frankenstein por causa de algumas experiência genéticas numa entrevista que dei à imprensa. Talvez seja possível, reverendo – continuou, colocando o dedo indicador nos lábios – talvez a imagem que a imprensa passa é de um cientista maluco que brinca com a natureza. Eu acho que agi errado ao dar mais ênfase nas pesquisas mais inusitadas, por assim dizer... É, – prosseguiu – talvez eu não devesse ter mostrado os porquinhos e o Tudinho. Acho que eu deveria ter falado só das serpentes e dos protozoários alterados.
 – Porquinhos, serpentes, Tudinho! Do que está falando, doutor, – perguntou o reverendo muito curioso.
 – Ah, sim, os porquinhos que acendem os olhos. Nos os manipulamos geneticamente e inserimos em seus genes a mesma sequência genética que faz os vaga-lumes acenderem. Isso não foi tão difícil. Com as serpentes foi mais complicado um pouco...
 – Mas qual a razão de um porco que acende os olhos, perguntou o reverendo, esboçando um leve sorriso.
 – Dr. Athanasios prosseguiu com a explicação ainda mais sério. Se havia um momento em que nem pensava mesmo em sorrir era quando falava de suas experiências.
 – Não é nenhuma maluquice – tratou de responder logo – nos os alteramos porque queríamos diferenciar dos porcos do estudo de controle, então não precisamos marcá-los de alguma outra forma. Sobre as serpentes, – continuou – nos alteramos seus genes até que conseguimos que elas produzissem morfina em vez de veneno.
 – E que benefício há nisso – perguntou o reverendo, dessa vez mais contido.
 – Na verdade, em termos práticos, quase nenhum mesmo, até porque, outros colegas conseguiram resultados fabulosos no tratamento de diversas doenças a partir do veneno dessas serpentes. Morfina também é uma medicação muito antiga, usada até 2015, se não estou enganado. Enfim, há muito tempo, hoje substituída por medicações mais eficientes. Mas fizemos isso a título de experiência. Queríamos manipular certas proteínas geneticamente.
 –  Dr. Athanasios estava já concluindo sua explicação, quando se deu conta de que ficou faltando o Tudinho.
 – Ah, sim reverendo, como eu poderia me esquecer dessa preciosidade. Venha cá, Tudinho, esse eu faço questão de mostrar, reverendo, Tudinho é nossa mascote, nosso gatinho de estimação, também modificado geneticamente. O senhor conseguiria identificar no que ele é modificado?
Rev. Lemos ajeitou os óculos, curvou-se um pouco, enfiou o dedo por trás do colarinho clerical, afastou um pouco a cabeça, olhou novamente, franziu os lábios e disse:
 – Não, de fato não consigo ver nada de diferente, parece um gato comum.
 – Bem, ele é mesmo muito comum em todos os aspectos, menos por um detalhe. Veja, pode acariciá-lo.
 – Reverendo Lemos esticou as mãos e acariciou o gato, que retribuiu o carinho espreguiçando-se um pouco e esfregando a cabeça no punho do religioso.
 – Então, que lhe parece? – perguntou o médico.
 – Ainda não vi nada de diferente, afirmou o capelão.
 – Os pelos, reverendo, na verdade não são pelos de gato, são cabelos humanos, embora nós o aparamos.
 – O reverendo foi tomado por um espanto visível.
 – Deixe-me ver de novo, doutor. Mas isso é inacreditável. E há algum propósito específico?
 – Bem, nesse caso um grande laboratório multinacional patrocinou nossa pesquisa e assinamos um contrato para que possam desenvolver um tratamento para calvície em troca de patrocínio.
Depois de guardarem silêncio por alguns segundos, Dr. Athanasios desabafou:
– Rev. Quando eu dei uma entrevista e falei de nosso trabalho, deveria ter enfatizado mais sobre as pesquisas com os protozoários. Eu garanto que se alguma mãe tivesse toxoplasmose durante a gravidez ia pensar duas vezes antes de depredar nosso laboratório.
 – Então vocês estão fazendo pesquisas com esse tipo de doença? – indagou interessado – É uma doença muito cruel.
Nesse ponto da conversa o Rev. Lemos ficou mais pensativo. E como está o andamento das pesquisas?
 – Bem, reverendo, estamos meio estagnados. Além de comprometerem nossas pesquisas ao destruírem grande parte do laboratório, não encontramos ninguém absolutamente que quisesse patrocinar esses  estudos. A indústria farmacêutica não acha que esse tipo de pesquisa proporciona lucros.
 – Dr. Athanasios, sem querer ser advogado do diabo, até porque eu estou do outro lado. – brincou – Mas parece que as pessoas estavam indignadas com o sacrifício dos animais.
Ora, reverendo, se eu fosse um crente, essa seria uma boa hora para dizer: ‘valha me Deus’! – respondeu, devolvendo a piada, mas sem sorrir.
Todos os dias animais são sacrificados para virar não só alimento, mas para uma enormidade de outros fins, e essas mesmas pessoas que destroem nossos laboratórios, depois vão comer hambúrgueres e cachorro- quente com seus filhos. Bem, não quero conversar sobre isso... Se bem que poucos animais são sacrificados. O último que tivemos de sacrificar foi um cachorro.
 – E por que o gato se chama Tudinho? – retornou o reverendo.
 – Bem, é que ele sempre come tudo que damos. Então as meninas diziam: ‘come tudinho’, e o apelido pegou.
 – E como o senhor está se sentindo esta semana, doutor?
 – Muito mais entusiasmado, estou muito agradecido pela oferta do Hospital Cruz Celta de nos deixar utilizar um anexo desocupado para não perdermos nossas pesquisas. Graças ao hospital, muitos estudos puderam ser preservados, por isso estou muito entusiasmado.
 – Está vendo, doutor, até mesmo um ateu pode ser cheio de Deus.
 – Que quer dizer, reverendo? – perguntou aprumando-se na cadeira.
 – É isso que a palavra entusiasmado quer dizer, vem de “en theos”, tomado por Deus, possuído por Deus.
 – Isso não havia me ocorrido, reverendo, é mesmo surpreendente como nossa língua está repleta de termos gregos até hoje.
 – Alias seu sobrenome também é sugestivo, sabe o que significa?
 – Sim, – respondeu – significa imortal, “a thanatos”, thanatos quer dizer morte, então “athanasia”, de onde vem Athanasios, quer dizer imortalidade.
 – E o senhor acredita na imortalidade?
 – Claro que sim, reverendo, estamos nos aproximando do que chamamos de singularidade e logo não vamos mais morrer – com toda certeza.
 – Então, agora temos de retomar nossa definição de alma ou psique, o senhor está reconhecendo que a psique continua após a vida?
 – Não, reverendo, para mim psique é o mesmo que consciência, as informações produzidas por nossas experiências, no nosso cérebro, e que podem ser manipuladas e armazenadas como qualquer conjunto de informações de um computador.
 – E como o senhor acha que podemos ser imortais, se não acredita na alma como uma entidade espiritual?
 – Existem várias possibilidades, uma delas é pelo aprimoramento genético. Já conseguimos fazer um rato viver quarenta gerações. Outra possibilidade, que também já está bem próxima, seria fazer o “download” de nossas memórias, enfim, de nossa consciência ou psique para um computador e as preservar para sempre – explicava o doutor Athanasios com toda a convicção e não evidenciando sinal algum de dúvida. Falava disso com toda a certeza mesmo.
 – Bem, doutor, retornou o religioso, eu acredito, como Platão e os filósofos antigos, que nossa realidade é uma projeção da realidade verdadeira e nossa alma ou espírito é imortal e continua para sempre. É assim que eu defino psique ou consciência.  Mas eu também li estudos de colegas seus afirmando que a consciência não reside no cérebro. O cérebro – prosseguiu – é  um receptor da consciência, que é uma realidade separada e distinta. Vi, nesse estudo, que os microtúbulos do cérebro, desculpe se falo em termos leigos, são como computadores quânticos.
 – Esses estudos não são aceitos pela comunidade científica. – ressaltou – nós, cientistas, trabalhamos com fatos mensuráveis e concretos. Esses estudos são mais filosóficos do que científicos.
 – A discussão sobre a definição de psique estava ficando acalorada quando ouviram um alvoroço e uma gritaria vindos dos corredores.
Uma enfermeira baixa e gorda irrompeu na sala onde estavam sem pedir licença, pálida, ofegante...
 – Dr. Athanasios, Dr. Athanasios, um acidente, venha, que horrível, que horrível...
 – Dr. Athanasios suspendeu a conversa, pediu desculpas e saiu imediatamente até ganhar o corredor.
Os gritos, a agitação e o corre-corre prosseguiram. Eram gritos altos, de desespero, de angústia, de dor...
 – Rosna rabugento, rosna rabugento... – Gritava uma mulher alta, também com um jaleco branco, todo tingido de sangue, com os cabelos desgrenhados, curvando-se para frente e segurando a mão toda ensanguentada.
 – Aquele cachorro, Dr. Athanasios, aquele cachorro rabugento e infeliz mordeu meu dedo – concluiu chorando ainda mais alto – eu vou perder a ponta dos meus dedos – desesperou-se.
 – Calma, Dra. Kelly, fique calma, aparentemente não foi uma mordida muito forte, vamos cuidar disso e mantenha a calma...
 – O senhor diz isso porque não foi com seu dedo. Aquele animal não merece tanta atenção, o que ele fez é... ai meu dedo...
 – Dra. Kelly, contenha-se, mesmo se a senhora perdesse o dedo inteiro, sabe que nosso tratamento com regeneração de órgãos já é bem-sucedido e podemos recuperá-lo até com as impressões digitais originais.
 – Eu estou com muita dor, doe muito... Eu não quero mais tratar daquele cachorro ingrato e rabugento.
 – Vamos conversar sobre isso depois, Dra. kelly, agora vamos cuidar de seu dedo – apressou-se o Dr. Athanasios, conduzindo-a para o setor de emergência do hospital, onde lhe deu um sedativo e a encaminhou para ser devidamente atendida.
 – Dr. Athanasios retornou e suspendeu sua conversa acalorada com o reverendo.
 – Rev. Lemos, peço desculpas, mas tivemos um incidente e preciso verificar de perto o que ocorreu – disse, apanhando suas anotações, alguns aparelhos médicos e uma caixa de remédios.
Quando estava a caminho dos quartos, percorrendo um extenso corredor bem limpo e iluminado, encontrou-se com uma enfermeira, aparentando certo nervosismo e um tanto reticente.
Dr. Athanasios quis se inteirar do incidente e foi logo inquirindo sobre o que ocorrera com a enfermeira-chefe de plantão.
Dr. Athanasios, preciso relatar algumas coisas... O seu Ataliba anda muito esquisito.
 – Como assim, Eliza, como esquisito?
 – Bem doutor, depois que ele recebeu o implante do maxilar direito, passou a ter um comportamento diferente. Antes ele era muito alegre e divertido, muito dinâmico. Agora ele passou a ser deprimido, triste, apático e reclama de tudo. As outras enfermeiras estão o chamando de velho rabugento.
 – Dr. Athanasios ficou meio pensativo e quis mais informações.
 – Como especificamente tem sido o comportamento dele, como ele tem agido?
 – Outro dia, doutor, ele roubou o jaleco de uma médica, fingiu que era médico e desceu para o andar térreo, e nós o encontramos sentado no jardim, comendo pé-de-moleque, que ele havia comprado no carrinho de doces na frente do hospital. Nós explicamos que ele não poderia fazer isso em hipótese alguma por causa do tratamento. Mas ele deu de ombros e saiu dizendo palavras ríspidas.
Num outro dia, ele beliscou uma atendente e disse que sabia muito bem cuidar de si sozinho. Enfim, doutor, ele está muito triste, deprimido e melancólico. Antes era carinhoso, afável e amistoso, agora é impertinente, ranzinza e birrento.
 – Eu vou conversar com ele, Eliza, vou averiguar o que está ocorrendo.
Dr. Athanasios saiu pensativo, querendo entender o que havia ocorrido.
O seu Ataliba já havia se submetido a vários tratamentos devido a uma doença rara que deixava seus ossos fracos e quebradiços.
O primeiro tratamento foi um sucesso, embora naquele ano a técnica do doutor Athanasios não estivesse totalmente desenvolvida. Ele obtivera sucesso com ossos geneticamente alterados de um cavalo, depois de um boi e, da última vez, de um cachorro, que o Dr. Athanasios teve de sacrificar depois de extrair uma seção do maxilar com genes humanos desenvolvidos no próprio cachorro. Foi um tratamento tão bem-sucedido que havia até dentes humanos despontando dos ossos.
 – Doutor, retomou a enfermeira, e agora ele mordeu o dedo da Dra. Kelly, a dentista que o senhor contratou para verificar os dentes. Quase arranca o dedo da coitada, doutor.
 – Vou conversar com ele.
Dr. Athanasios entrou no quarto onde estava seu paciente, aproximou-se de vagar, e, com voz suave, tentou iniciar um diálogo com o seu Ataliba, um homem idoso, com oitenta e três anos, de rosto pálido e aparência debilitada. Seus olhos fundos e estáticos revelavam um ar de profunda tristeza e melancolia.
Não querendo ser invasivo, o Dr. Athanasios começou fazendo algumas perguntas de rotina e medindo a pressão de seu paciente cuidadosamente.
 – Sua pressão está perfeita, seu Ataliba, o senhor está sentindo alguma coisa.
 – Fome – retrucou ­– estou cansado dessa sopinha.
 – Mas, seu Ataliba, tentou explicar o médico, com extrema cautela e paciência – o senhor ainda não pode comer coisas muito sólidas, embora já esteja quase pronto para ir embora para casa – disse o Dr. Athanasios, fingindo que estava prestando atenção no  maxilar, mas observando a reação de seus olhos. No fundo estava mesmo tentando descobrir pistas de algum problema de alguma depressão ou alteração comportamental, que nesse caso, deveria encaminhar a um psiquiatra. Talvez um transtorno bipolar, pensou consigo.
 – Seu Ataliba – continuou ele – tenho uma notícia boa, estou pensando em lhe dar alta no domingo, para que o senhor possa passar o dia dos pais em casa, que acha?
 – Não acho nada, retrucou em tom ríspido, demonstrando mais tristeza ainda.
 – Parece que a notícia não o entusiasmou muito, seu Ataliba, não está contente em ir para casa?
 – Seu Ataliba deixou escorrer uma lágrima e disse: por que deveria?
 – Pois o senhor vai ficar com sua família agora, não acha isso bom?
 – Não acho doutor, será uma hora triste.
 – Por que diz isso?
 – Dr. Athanasios, já estou no fim da vida. Meu filho ganhou uma promoção. Ele sempre lutou por isso e agora vai se mudar para o exterior. Então,  conversamos sobre isso e ele decidiu me colocar num asilo.
­­–  O que ocorreu com o dedo da Dra. Kelly,  seu Ataliba?
­– Eu não mordi o dedo dela, doutor,  quer dizer, eu mordi sim, mas  foi sem querer mesmo. Ela pediu para eu morder uma coisa parecida com uma goma de mascar.  Eu comecei morder e ela disse, ‘morda com força, seu Ataliba, com força’. Então eu mordi, mas ela não tirou o dedo, que posso fazer?
Dr. Athanasios pensou um pouco antes de continuar.
 – Mas, seu Ataliba, não pode pensar assim, logo nos vamos viver indefinidamente. Já conseguimos a cura para a maioria das doenças. Não lhe parece animador saber que podemos viver para sempre?
Dr. Athanasios percebeu uma mudança acentuada no comportamento do seu Ataliba. Lembrou-se que, depois do tratamento com o osso do cavalo, ele tornou-se uma pessoa brincalhona e um verdadeiro fanfarrão. Depois do tratamento com os ossos do boi, tornou-se mais autoritário. E agora estava se comportando como um velho ranzinza e rabugento. Algo deveria estar acontecendo. Pensou até na possibilidade de alguma informação celular que desconhecia.
 – Viver para sempre para que, Doutor? Eu trabalhei a vida toda para sustentar minha família. Tivemos momentos de alegria e de dificuldade, mas sempre estivemos juntos. Eduquei meu filho, trabalhando duro. E agora me sinto sozinho.
 – Eu entendo, então está chateado pela decisão de seu filho?
 – Não, doutor, disse num tom de voz mais baixo.
 – Eu não sinto rancor nenhum. Foi para isso que eu o criei. Ele está seguindo o seu caminho, e eu, o meu. São coisas da vida, doutor.
 – Por que está tão triste, seu Ataliba, pode me contar.
Dr. Athanasios sempre tratou seus pacientes no que tange aos aspectos físicos, mas se comoveu com as palavras do Dr. Ataliba e decidiu ser mais acessível e aberto.
O que está deixando o senhor triste, seu Ataliba?
 – O que adianta viver para sempre, doutor, se minha Belinha não está mais comigo? O que adianta viver para sempre e sozinho? Para que viver para sempre se ainda há tanta dor, tanto egoísmo, tanta inveja, tanta mesquinharia, tanta maldade e abandono. Não seria horrível viver para sempre com desigualdade, solidão, guerras?
 – Mas, seu Ataliba, o ser humano está mudando moralmente também –  disse tossindo um pouco, sem muita convicção.
Seu Ataliba guardou um pouco de silêncio e depois continuou:
 – Eu vejo o seu empenho e sua dedicação para que as pessoas vivam melhor, Dr. Athanasios, o senhor é um homem bom e quer que as pessoas também vivam sem sofrimento, mas há certas coisas que o senhor não pode consertar com seus tratamentos genéticos.
 – Dr. Athanasios ficou um pouco pensativo sobre o que fazer.
 – Conte mais sobre o que está sentindo, seu Ataliba, como o senhor pode descrever o que sente?
 – Sinto como se minha vida fosse um círculo, que a cada dia vai se fechando de vagar, e cada vez que ele se fecha, eu perco alguma coisa.
Não posso caminhar para onde quero, ler livros, ouvir músicas
  – Mas nós podemos tratar de sua visão e audição, seu Ataliba...
       Seu Ataliba não se importou e continuou:
 – Hoje me sinto limitado, cada vez mais limitado, e até o que bebo e como é controlado. Só me dão essa gosma que vocês chamam de sopa. Eu queria comer um doce, e o hospital inteiro correu atrás de mim e confiscou meu doce. Queria andar no jardim, queria respirar ar puro...
            Dr. Athanasios pensou mais um pouco e achou que o Rev. Lemos seria uma boa pessoa para o animar, afinal ele era um veterano capelão e sabia lidar com essas questões.
          – Seu Ataliba, o senhor gostaria de conversar um pouco com o nosso capelão, o Rev. Rodolfo Lemos?
          – Aquele velho gagá? Não, obrigado, ele é muito carinhoso, já passou por aqui três vezes e sempre se esquece de que já falou comigo. Sempre me dá a mesma coisa para eu ler, lê o salmo 22/23, diz que Jesus é a ressurreição e a vida e quem crer nele terá a vida eterna. Eu já conheço essas passagens todas. Então eu não quero falar com ele.
          – Mas o senhor não acredita em Deus?
          – Não sei se Deus existe ou não. Não sei se esses assuntos religiosos podem me ajudar. Eu prefiro não ser influenciado.
          – Dr. Athanasios sentiu que houve uma melhora no comportamento de seu Ataliba e resolveu voltar outra hora. Mas antes de sair disse:
          – Vou conversar com seu filho antes de lhe dar alta e estarei aqui para me despedir, mesmo que seja no domingo. Quero continuar sendo seu amigo e o visitar de vez em quando.
            Desta vez, o Dr. Athanasios ficou surpreso com o próprio comportamento, mas também queria acompanhar o resultado de suas pesquisas.
            Dr. Athanasios se despediu e deixou o seu Ataliba deitado, olhando para cima, pensativo...
            Como prometera, domingo de manhã, já estava no hospital Cruz Celta para se despedir do paciente e novo amigo.
            Não tardou para aparecer um jovem executivo, bem vestido, cabelos bem assentados, óculos escuros e barba por fazer.
            O Dr. Athanasios ficou por perto e pôde ouvir a conversa.
            O jovem executivo entrou, e, depois de cumprimentar a todos, dirigiu-se até onde estava o seu Ataliba e o abraçou efusivamente, um abraço longo e apertado e, já com os olhos cheios de lágrimas, indagou:
             – Pai, o senhor já está pronto?
             – Sim, filho, já podemos ir. É hoje que vai me levar para o asilo?
             – Não, pai, hoje não.
             – Então vamos passar o dia dos pais juntos?
             – Não, pai, não vamos.
             – Seu Ataliba abaixou a cabeça triste.
             – Bem, eu a estava pronto para esta hora, filho, mas antes de ir, queria pedir desculpas por não ter sido um pai presente e lhe dar mais atenção, meu filho. Eu sempre quis ficar mais ao seu lado, mas a vida foi dura comigo e eu precisava trabalhar. Perdoe-me, meu filho. Bem, agora já podemos ir para o asilo, concluiu enxugando algumas lágrimas.
             – Não vamos para o asilo, pai, vamos para casa.
            Seu Ataliba não entendeu e abriu bem os olhos.
             – Sim, pai, eu pensei bem e resolvi não aceitar a promoção. Quero que também me perdoe e que saiba que eu o amo. Quero que fique com a gente para termos tempo de conversar. E que daqui para frente todos os dias serão  dia dos pais...
 Quando estavam de saída, seu Ataliba viu o Dr. Athanasios se aproximando e o chamou.
 – Hei, doutor, quero me despedir e agradecer por tudo. Vou pensar em tudo que me disse, e acho que agora não vou precisar mais disso. ­– disse, entregando um pacotinho de doce de amendoim. – Pode ficar com esses pés-de-moleque. Obrigado por tudo Dr. Athanasios. ­ E, depois de haver apanhado seus pertences, ia deixar para trás os panfletos sobre a vida eterna ofertados pelo Rev. Lemos, mas mudou de ideia e também resolveu os levar por precaução.

            Dr. Athanasios ficou observando a partida dos dois e aproveitou que estava por trás de uma persiana para dar um sorriso amplo.





Gilson Marcon de Souza

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