Hoje eu queria continuar falando
sobre tradução. Queria, queria muito! Queria falar sobre ferramentas de
trabalho, preços, modalidades de tradução. Queria falar algo sobre tradução
para legendas e dublagem. Hoje eu queria falar sobre tradutores famosos. Pensei
em falar sobre São Jerônimo, mas vou ter de desviar minha atenção para um
assunto muito desagradável.
Não queria falar sobre isso logo
no começo dos posts. Infelizmente,
vou ter de abordar este assunto e espero não jogar água fria no entusiasmo
daqueles que estavam pensando em ser tradutor ou intérprete.
No nosso primeiro post, disse que a tradução era uma
arte... uma arte bela, sublime e antiga... mas hoje serei obrigado a falar dos ossos
do ofício, cuja expressão correspondente em inglês, the seamy side of the job, ou seja, o lado sórdido do trabalho,
expressa com mais fidelidade o que estou sentindo. Hoje vou dispensar todas as
formalidades, todas as regras de gramáticas e, desde já, rogo pela paciência
dos que pararem para ler.
Na verdade, eu queria mesmo encher
esta página de palavrões, mas isto não cairia bem para um profissional da
palavra. Quem sabe, mais tarde, eu não despeje todos esses palavrões numa
rodinha de conversa informal, de preferência tomando alguma cerveja.
Preciso fazer algo sobre isso. Pensei
até em fazer como o cabeleireiro do rei Midas: enfiar a cabeça num buraco bem
fundo para não espalhar as notícias, mas acho que a ideia da cerveja é bem
melhor.
Estou me referindo ao episódio em
que Midas decidiu servir Pã, aquele ser grotesco, de meter medo, que assombrava
as pessoas nas florestas. Ele era um sátiro, um ser híbrido meio bode, meio
gente... cabeça de homem e corpo de bode. Menos mal, pois até hoje ainda
existem pessoas híbridas, meio mulher, meio cadela, meio homem, meio asno
(existem muitos sim, eu juro que hoje mesmo já vi vários deles).
Enfim, voltemos ao mito: Depois
de haver ficado enfastiado com o dom que Baco lhe concedera de fazer tudo virar
ouro, Midas decidiu servir outra divindade: Pã. Pã, além de ser o deus do ovo e
dos bosques, tocava uma flautinha ridícula e irritante e era dado a assustar
pessoas na floresta. Mesmo assim, Midas decidiu segui-lo e, depois do duelo
musical com Apolo, arbitrado por Timolo, foi reclamar com este sobre a decisão injusta,
a seu ver, de ter escolhido Apolo (o
deus da arte, da poesia, da literatura) em detrimento de Pã. Somente Midas escolhera
Pã.
Para resumir, depois de Apolo haver
sido escolhido o autor da melhor música, o castigo de Midas foi desenvolver
duas enormes orelhas de burro (até que podia ser um bom castigo para quem tem mau
gosto musical).
Midas ficou muito indignado com o
par de orelhas de burro e as escondia com um turbante. Jurou de pés juntos que
mataria quem quer que revelasse esse segredo até então guardado por ele próprio
e por seu cabeleireiro.
Depois de travar uma luta intestina
entre guardar o “babado forte” e morrer, seu cabeleireiro teve uma ideia inusitada:
cavar um buraco no chão e gritar dentro
dele a plenos pulmões tudo o que sabia sobre as orelhas de burro do rei Midas. Nesse
processo catártico, não só economizaria com um analista, como também se livraria
do desejo enorme de colocar a boca no trombone.
O resultado não podia ter sido mais
desastroso: uma versão diz que um junco escondidinho perto do buraco ouviu tudo
e se encarregou de espalhar o caso. Outra versão diz que quem ouviu tudo e não se
poupou de abafar o caso fora Zéfiro, aquele vento fofoqueiro que, numa outra
ocasião, também já quis melar o caso amoroso do próprio Apolo com Jacinto, mas
essa é outra estória...
O que está me deixando indignado é
o seguinte: Ontem, um amigo muito querido, lutando para pagar seus estudos,
estava muito contente por estar fazendo uma versão de um texto para uma empresa
de outro estado. Como eu não tenho um buraco para gritar, achei que meu blog poderia ser um bom substituto (se bem que eu não faria questão alguma se um junco ou um vento
qualquer espalhasse o que eu ouvi e li hoje). Só guardo segredo mesmo por consideração
ao meu jovem amigo tradutor. Este sim de caráter ilibado e ética irretocável.
Não vou citar nomes, nem empresa,
nem a procedência desse episódio tão lamentável e tão abjeto a pedido dele.
Ontem, meu amigo estava todo
animado: havia feito uma versão primorosa de um texto. Estava contente porque aquela “graninha” viria bem a
calhar para ajudar no pagamento de sua faculdade. Fiz umas pequenas sugestões e
perguntei quanto ele iria cobrar. Ele me disse o preço e eu respondi que era a
metade do preço da tabela sugerido pelo Sindicato dos Tradutores. Humildemente,
disse ele que estava começando e que queria cobrar menos para que o cliente
conhecesse o seu trabalho.
Meu amigo estava muito confiante,
mas se mostrou meio temeroso sobre o pagamento.
Eu disse a ele para ficar
tranquilo, pois é mais difícil achar um profissional que faça versão do que tradução,
e que seu cliente, sabedor deste fato, e sendo honesto, faria de tudo para não
perder o profissional tão bom como ele.
Como eu estava enganado! Mesmo depois
de anos de tarimba fui tão ingênuo!
Hoje de manhã, meu amigo me
informou que a secretária da dona fulana disse que ela não aprovou a tradução
(dois ou três parágrafos), porque os termos técnicos estavam errados.
Uma vez aconteceu algo parecido
comigo. No meu caso não disseram nada sobre não pagar, mas queriam me alertar
sobre a tradução errada que, segundo eles, eu havia feito.
Depois de sofrer algum tempo com
esse tipo de insinuação, eu comecei a
insistir para que mostrassem o erro.
“Ah, num lembro bem agora, mas eu
vou ver depois...”
“E aí, você já viu o erro?”
Depois de tento insistir, vieram
com um texto todo rabiscado de caneta vermelha, quase que o esfregando na minha
cara.
Refutei e repeli cada erro e
disse que, se desejassem esclarecer alguma dúvida, poderíamos contar com o
auxílio do Sindicato dos Tradutores.
Não disseram mais nada.
Pensei que estaria livre desse
tipo de infortúnio para poder me dedicar à revisão de um texto enorme de cerca
de quatrocentas páginas, que eu havia interrompido, para dar atenção a essa
pendenga.
Eu já estava muito estressado. De
repete o telefone toca...
“Alô, então, viu, você tinha
pedido pra gente se sentir livre para mostrar um erro, né?”
“Sim, pois não”.
“Então, é que você disse ‘o saco
estava selado’, e o certo era ‘o saco estava lacrado’”.
Desisti do cliente.
No caso do meu amigo, não vou
dizer o que acharam de errado para, inadvertidamente, não denunciar o santo e ficar somente com o milagre, mas é
algo como trocar seis por meia dúzia ou o velho truque de trocar por outro
sinônimo.
Grande parte disso é pura
desonestidade e não encontro um termo melhor para isso do que “safadeza”.
Mas pensei melhor, e no fundo, no
fundo, eu sempre vejo algo por trás disso. Algo com que todo artista deve tomar
cuidado. Não tem muito a ver com o aspecto financeiro, mas com a inveja...
Parece que quando uma pessoa talentosa
começa a despontar, logo vem um invejoso
de plantão para tentar rebaixá-la.
Se você for uma pessoa medíocre,
vai ter uma vida calma e sossegada, mas se for um bom cantor, dançarino,
pintor, escritor, tradutor, intérprete, ou mesmo se dominar bem outro idioma, cuidado
com a inveja.
Essa pessoa que não quis pagar
por três parágrafos de uma versão, que, se de fato soubesse verter para o
inglês, teria ela mesmo se disposto a
fazer, deve ter ido dormir se mordendo de inveja, mas não sem antes querer pisar no texto
primoroso do meu jovem amigo tradutor, a quem quero dedicar este texto e
encorajá-lo a não desistir. Não só a ele, como a todos os jovens tradutores que estão
iniciando suas carreiras.
No fundo mesmo, eu acho que a
distinta senhora deve dever ter se apropriado da versão com a as duas mãos e
dado essa desculpa tão esfarrapada e depois deve ter dito que ela mesma quem fez.
Eu fiquei pensando e não sei o
que faria.
O que vocês acham que a gente deve
fazer com um “cliente” desses?
Podem usar o espaço para comentários do meu blog
para servir de buraco e gritarem à vontade.
Como eu não tenho um
buraco-confessor para enfiar a cabeça, vou usar meu blog para desabafar e meditar um pouco nas palavras de São
Jerônimo, sobre quem gostaria de continuar falando numa outra oportunidade:
“Aprendi a Sabedoria sem maldade
e reparto-a sem inveja” Sb 7, 12-34
Gilson Marcon de Souza
amazon.com/author/gilsonsouza
Gilson Marcon de Souza
amazon.com/author/gilsonsouza
Grande texto Gilson! Forte abraço
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