Parece que a moda hoje em dia é “accent reduction”. É aí que a porca torce
o rabo: eles quem, sotaque de quem?
Estava interpretando um grupo de
estrangeiros num restaurante; eu e mais dois amigos colegas intérpretes, os
dois excelentes profissionais: um americano e o outro brasileiro, com um
perfeito inglês britânico.
Estávamos
falando sobre o modo de falar, gesticular e sotaques. Eu queria saber se meu
inglês era americano ou britânico, e eles me responderam: ah, Gilson, seu
inglês é brasileiro!
Outro
americano nos disse que ele era de Arizona, mas ele não tinha sotaque do
Arizona porque havia se mudado para um estado no norte, e falar com sotaque
sulista lá soaria como uma pessoa “dumb”.
Meu amigo intérprete, com sotaque
britânico, disse que na própria Inglaterra havia esse tipo de preconceito.
Eu disse:
“Mas, se mesmo lá alguém de outro lugar é considerado idiota por
ter um sotaque diferente, e se for um estrangeiro, então?"
Outra Americana, ouvindo a
conversa, me tranquilizou e disse:
“Os americanos adoram sotaque
britânico e sotaque brasileiro”.
Não sei se ela quis ser política e amainar os
ânimos, mas ela parece ter dito isso com convicção.
Perguntei por que gostavam desses sotaques.
Ela respondeu: “o sotaque britânico tem um ar de aristocracia e o sotaque
brasileiro é sexy”.
Pensei sobre isso e descobri que
estamos falando mal dos outros, mas fazemos o mesmo aqui mesmo no Brasil. Você já
ouviu alguém apresentar um telejornal com sotaque nordestino? Já viu algum
apresentador de algum programa de âmbito nacional com um sotaque gaúcho?
Talvez, sem a televisão e os
meios de comunicação modernos as diferenças regionais seriam bem mais diferentes
ainda.
Num mesmo país antigo, entre um
pequeno povoado e outro, onde não havia meios
de comunicação, as diferenças eram maiores. O preconceito contra pessoas com
sotaque diferente já existia no tempo de Cristo. Quando viram São Pedro por
perto, suspeitaram que ele fosse um dos discípulos por causa de seu sotaque
galileu.
Estava pensando sobre um
exemplo para expressar o que estou pensando e logo me veio à mente quatro
pessoas famosas provenientes de Santo Andre: Adoniram Barbosa, Danilo Gentili,
Dani Calabresa e Lucélia Santos.
Todos são de Santo André, ou moraram
aqui, mas qual é o sotaque característico de Santo André? Como as pessoas falam
por aqui? Parece que há sotaques bem diferentes entre essas pessoas famosas.
Não, a gente ouve esses tipos de
sotaque bem aqui em Santo André mesmo.
Vamos começar com Adoniram
Barbosa, que, aliás, parece ter entendido muito bem esse aspecto do sotaque. Ele
foi muito criticado por compor seus sambas do modo como o povo falava. A elite intelectual
paulistana ficava horrorizada com aquele “português macarrônico e sofrível”, mas
era assim que o povo falava.
Meu avô era filho de italianos e conhecia o Adoniram quando ele morava em Santo André. Ele falava com aquele
sotaque dos sambas do Adoniram.
Minha mãe, uma geração depois,
fala bem parecido com a Dani Calabresa, que, embora mais nova que minha mãe,
deve ser neta ou bisneta de italianos.
Minha geração fala de modo mais
parecido com o Danilo Gentili.
A Lucélia Santos tinha um sotaque
mais padronizado, mais parecido com um português padrão, talvez por ser uma
atriz de abrangência nacional e internacional.
Nosso jantar com os estrangeiros
continuou. Mudamos a conversa e eu dizia dos meus hobbies: rock antigo (não sou tão velho assim, mas adoro rocks antigos e músicas dos anos 50, 60).
A americana deu um salto,
arregalou os olhos e disse:
“Eu também adoro rock antigo”
Ficamos entusiasmados. Depois de umas taças de
vinho e algumas caipirinhas estávamos cantando: “Purple
People Eater, please don’t eat me”,
na mesa do restaurante.
Na pressa eu traduzi como Comedor de Gente
Roxa, mas meus colegas intérpretes me corrigiram: “Comedor Roxo de Gente...”
Minha interlocutora americana
veio ao meu socorro e disse:
“Quando
Sheb Wooley fez esse rock, em 1958, mesmo os locutores se confundiam e não sabiam
se era o monstrinho que era roxo e comia gente ou se ele é que gostava de comer
gente roxa, por isso que até hoje o monstrinho aparece pintado de roxo”.
Mesmo
assim é estranho. “O que quer dizer isso?” perguntei para a senhora americana?
Ela respondeu:
“Era uma lenda urbana, o Purpble People Eater” era um monstrinho
de voz gutural que assustava as crianças que não se comportavam bem”.
Eu tinha tentado traduzir esse rock há alguns meses para um amigo do Skype. Estava encontrando certa
dificuldade não tanto com a tradução, mas de expressar com mais fidelidade o
que estava por trás da letra fria. Como traduzir um personagem de uma lenda
urbana dos anos 50 do sul dos Estados Unidos?
Comecei pesquisando um pouco mais e descobri
que o tal monstrinho era algo como o “homem do saco”, o “bicho papão”, ou a
mulher loira, com algodão na boca, que aparecia nos banheiros das escolas, ou a
própria Cuca.
Começa
a refletir uma ética WASP, a ética do trabalho duro. Todos deveriam odiar o Purple People Eater porque ele não era
dado ao trabalho, era moralmente moroso, preguiçoso e odiava as pessoas. No
fundo era meio devasso.
Nesse
período, nos Estados Unidos, pela primeira vez os adolescentes estavam tendo
poder de consumo e começaram a se rebelar contra certos valores tradicionais.
Enfim, como traduzir uma letra
dos anos 50, de um compositor WASP de Oklahoma, para um adolescente da
periferia de Santo André de 2014, que já fala diferente de Adoniram Barbosa,
Dani Calabresa, Danilo Gentili e Lucélia Santos?
Meu sobrinho, de uma geração mais
eclética, com mais misturas, mais migrantes nordestinos e menos italianos, quis
saber o que eu estava ouvindo.
Tentei explicar, disse que era um
rock antigo muito engraçado e comecei
a traduzir. Ele não ficou muito interessando e foi ouvir funk.
Então tive a ideia de traduzir no
jeito que ele falada, ou seja, do jeito como a geração mais nova de andreenses fala,
mais especificamente, na periferia de Santo Andre. Depois de ler pra ele a nova
tradução, ele me disse:
Bem, eu vi o
bagulho vindo do céu.
Tinha o um
chifre enorme e um olhão.
Me deu um
cagaço e eu disse: “caraca, mano,
Acho que é o
cara roxo que come gente!”
Era o cara
roxo que come gente, que tinha um olho
só, um chifre só e que vinha voando.
Mó bizarro,
mano,
Um olho só!
Bom, o bicho
aterrissou e ficou brilhando numa árvore.
Daí eu
disse: “seu Cara Roxo que come gente, num me come”.
E ele disse assim,
com uma voz bem ríspida:
"Suave, nem ia rolar
de eu te comer porque você é muito tosco.”
“Era um comedor
roxo de gente que tinha um olho só, um chifre só e que vinha voando.
Mó bizarro, cara,
Um chifre só”.
Dai eu
falei: “o, seu Cara Roxo que come gente, o que tá pegando?”
Ele disse: “é
comer gente roxa e isso é da hora,
Mas num fui
pra isso que eu vim pra terra não.
É que eu
queria arranjar um trampo numa banda de rock!”
Putz, que
alívio! Rock and roll, cara roxo que come gente e voa…
Pé de pombo,
estropiado, cara roxo que come gente...
Eu disse para ele: “Veio, a galera aqui usa shortinho cavadão,
Que da hora, uau!”
Daí, o cara
pulou da árvore e começou a brilhar no chão;
Começou a
dançar rock e agitar.
Era uma
música aloprada com uma melodia irada.
"Wop bop a lula wop bam boom"
Putz, que
alívio! Rock and roll, cara roxo que come gente e voa
Pé de pombo,
estropiado.
Eu gosto de shortinho
cavadão, seu Cara Roxo que come gente
Que da hora, seu Cara Roxo que come gente!”
Que da hora, seu Cara Roxo que come gente!”
Bom, dai ele vazou, tá ligado?
E num é que o cara apareceu na TV ontem à noite?
Ele tava tocando e agitando a galera,
Tocando rock pelo chifre que ele tinha na cabeça.
Tequila
Gilson Marcon de Souza
Tradução perfeita de uma letra até certo ponto difícil... parabéns!
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