Gilson Marcon de Souza
O alvoroço na entrada do ônibus não permitiu que Vulpy desanimasse.
Ainda que sua prima Foxy não interviesse naquela situação embaraçosa, mesmo
assim ela teria insistido em continuar a viagem. Ela achava que tinha o direito
de prosseguir mesmo sem os vinte e cinco centavos para completar o dinheiro da
passagem.
“Eu não estou mendigando para viajar
de graça,” vociferou a raposa Vulpy, com o olhar colérico e com as mãos na
cintura, pronta para dar umas boas cotoveladas em quem quer que se atrevesse a
impedir sua entrada.
“Eu disse que amanhã eu pago esta
droga de vinte e cinco centavos. Eu tenho o direito de viajar, pois pago impostos
e essa tarifa é uma afronta. Ninguém tem o direito de me impedir.”
“Calma, Vulpy, calma,” tranquilizou a
prima Foxy, abrindo a mão e apressando-se para separar algumas moedinhas que
havia retirado de um porta-níquel.
Foxy havia estranhado a celeuma na entrada do ônibus e não hesitou em
correr para socorrer a prima aflita.
Vulpy não se sentia envergonhada por não ter uma moedinha de vinte e
cinco centavos; ela achava que não deveria sentir-se diminuída, pois todos
deveriam ter acesso a um transporte decente, limpo e rápido para trabalhar.
“Não fique nervosa, Vulpy, tome os vinte e cinco centavos e vamos sentar
no nosso banco, como de costume. Vamos logo, eu deixei minha mochila no banco de
sempre para guardar o nosso lugar.”
Vulpy respirou fundo e tentou se recompor.
“O outro cobrador sempre me deixava pagar no outro dia, Foxy, às vezes
ele até deixava eu descer pela porta da frente sem pagar, e teve uma vez que até
pagou do bolso dele, quando havia um fiscal por perto.”
Mas, Vulpy, como você tem passado depois do lance das uvas, você parece
estar mais magra e suas olheiras estão maiores ainda do que da última vez.
“Nem me faça lembrar, Foxy, parece que tudo degringolou de vez.”
“E como estão todos, e seus irmãozinhos e a tia?” indagou Foxy, franzindo
os lábios, como era seu costume. “E como você está indo na faculdade. E seu
emprego?”
“Uma coisa por vez, Foxy, mas eu mudei minha vida depois que entreguei
aquele pacote,” respondeu Vulpy, sentindo-se vitoriosa e aprumando-se no banco.
“Pacote, mas que pacote?”
“Espera, espera, você está fazendo muitas perguntas de uma vez,”
protestou, Vulpy, respirando fundo e tentado se recompor, “vou começar do
começo.”
“Então me conta como você está indo na faculdade,” insistiu Foxy.
“Eu tive de parar depois que fui dispensada do meu trabalho, Foxy. Além
disso, eu tentei de novo conseguir um financiamento, mas o site do governo
estava lento demais. Eu insisti muito, mas a operadora interrompeu minha
franquia bem na hora que eu ia enviar os dados,. e dai ferrou tudo. Eu só tenho
uma opção de internet; além disso, o sinal oscila muito porque não tem uma
antena de celular muito perto.
“Mas Vulpy, então agora você está sem trabalhar e estudar?”
“Então, Foxy, meu patrão teve de fechar as portas da loja de tecidos —
ele não aguentou a carga dos impostos e o movimento caiu — então ele teve de despedir todos os funcionários.
Não só ele, Foxy, mas mais da metade das lojas daquela rua fechou as portas. Mesmo
assim, eu estou me virando, fazendo biscates e cortando cabelos da vizinhança.
“E como você está fazendo para sobreviver e cuidar das crianças e da
tia?”
“Espera, Foxy, deixa eu tentar organizar meus pensamentos; quero te
contar tudo antes de o ônibus chegar no seu ponto.”
“É melhor, Foxy, respire um pouco e organize suas ideias. Você tem a
tendência de encher linguiça e fazer suspense,” asseverou Foxy, com ar de riso.
“Agora eu estou aprendendo a ser mais sucinta; agora eu consigo seguir
uma linha de pensamento lógica depois que eu entrei para a política. Estou
aprendendo a fazer discursos,” orgulhou-se Vulpy, levantando a cabeça e coçando
o queixo, com certo ar de jactância.
“Não me diga, você agora está na política?”
“É, Foxy, quer dizer, eu comecei como cabo eleitoral do macaco Chitão.”
“Mas você é de um partido de esquerda ou de direita?”
“De esquerda, mas o segundo partido mais importante é de direita.”
“Eu não entendo isso, Vulpy, como pode um partido de esquerda ter um
partido de direita na mesma chapa?”
“Ah, eu não sei explicar isso, é que é colisão, daí pode.”
“E a chapa da oposição, de que linha é?”
“Lá é o contrário: eles são de direita, mas estão coligados com um
partido de esquerda.”
Foxy coçou as orelhas e franziu os lábios, tentando entender, mas
desistiu depois de alguns breves segundos.
“E o que você tem de fazer?”
“Tinha, Foxy, agora acho que não vão mais me querer por lá, mas quando
eu estava na militância, eu tinha de organizar comícios, distribuir pão com
mortadela e tubaína”
“E por que não vão querer mais você por lá?”, indagou Foxy, inclinando
um pouco a cabeça para o lado e novamente franzindo os lábios.
“Por causa do lance do pacote, né?”
“Ai, meu Deus, mas que diabo de pacote era esse?”
“Espera, eu já te explico. Uma vez eu cheguei e a casa e estava uma
bagunça. Minha mãe estava sentada na cadeira de rodas, cabisbaixa, girando um
polegar em torno do outro. A Licinha estava com um olhar tão triste! O
Joãozinho tinha feito xixi na cama, porque o banheiro é externo e ele ficou com
medo de sair à noite no quintal e pisar na água do esgoto de novo. A pia estava
cheia de louças pra lavar. O Paulinho não tinha levado o lixo para a rua de
cima, porque o caminhão de lixo não passa na nossa. A Chiquinha estava com as
fraudas toda suja, e o Juninho estava chorando de fome.
Foxy abaixou a cabeça e desta vez mordeu os lábios em vez de o franzir.
Eu fiquei com raiva por causa de toda aquela bagunça, mas achei que
deveria perguntar a cada um o que estava acontecendo. Comecei com a Licinha.
Estava com raiva dela, pois ela deveria organizar as coisas na minha ausência.
Depois fiquei morrendo de dó, tadinha!”
“Por que, Vulpy?”
“Porque ela me disse que achava que estava com alguma hemorragia,
Foxy”.
“Que horror, Vulpy!”
“Mas não era nada de grave; é que ela ficou mocinha e eu tive de
explicar essas coisas de raposa pra ela. Eu só me senti culpada por não ter
explicado esses lances pra ela antes,” comentou, Vulpy com ar distante e olhos
parados.
“Depois quis saber da mamãe. Ele ficou meio pensativa. Não queria me
deixar mais preocupada, mas disse que transferiram o Paulinho para uma escola
mais longe, pois iam reestruturar a rede de ensino: agora é mais uma despesa de
ônibus. A mamãe estava triste porque o projeto da nova creche não saiu, e a
Chiquinha ia ficar sem creche. A mamãe também estava preocupada com os mosquitos
da dengue, pois ficou sabendo que o bebezinho da sobrinha dela pegou zika e
nasceu com microcefalia. Ela estava sem os remédios para a pressão alta, porque
o posto de saúde estava fechado e não tinha mais remédios. Também estava triste
por não ter legumes para levar para a merenda da escola.
“Como assim, Vulpy?”
“É que a diretora da escola pediu que cada aluno contribuísse com algum
legume para a sopa, pois a merenda não estava sendo suficiente para todos os
alunos.”
“Entendi, mas continue...”
“Então, dai perguntei pro Juninho por que ele estava chorando. Ai,
Foxy, me cortou o coração. A tristeza que eu senti tomou lugar da raiva!”
“Que aconteceu?”
“O Juninho estava chorando de soluçar. Perguntei o que ele tinha. Ele
me disse que estava com fome e queria muito experimentar uma pizza. Ele disse
que nunca tinha comido um pedacinho de pizza em toda sua vida e queria tanto
experimentar. E disse que queria um ovo de páscoa também e refrigerante.
Foxy ouvia tudo atentamente, mas não se senta encorajada a falar nada.
Não sabia o que dizer e limpou os olhos lacrimejantes.
“Eu não sabia o que fazer. Então me lembrei de um pacote de pão de
forma velho, de umas fatias de mortadela que havia sobrado do comício e tive
uma ideia: resolvi juntar tudo que tinha. Havia alguns tomates passados, um
pouco de orégano e óleo. Então eu coloquei tudo numa forma. Coloquei as fatias
de mortadela por cima, um pouco de óleo e salpiquei com orégano. Aí me
lembrei da caixa de uvas que tinha ganhado e de umas barras de chocolate que
meu namorado tinha me dado. Eu derreti o chocolate e despejei nas uvas. Ficou
tudo redondinho e parecia um montão de ovinhos. O Juninho olhava tudo com
aqueles olhinhos vermelhos. Parecia uma pizza de verdade e ovos de chocolate
pequenos. Já estava escurecendo e quando tentei acender a luz, o Paulinho disse
que tinham cortado e energia por falta de pagamento.
“Deve ter sido uma noite tumultuada, Vulpy.”
“Nem me diga. Eu tive de me controlar pra vencer a minha raiva. Eu
estava chateada porque não consegui sair com meu namorado.
“E por que você não pôde sair?”
“Porque minhas roupas estavam meio molhadas. Não deu tempo de secá-las
direito no varal e ficaram bem úmidas. Fiquei com vergonha de sair com aquelas
roupas molhadas e mal cheirosas. O caminhão de água não passou durante a semana
e por causa do racionamento e eu tive de reservar água para o banho das crianças
e para a comida.”
Foxy, continuou ainda pensativa e encorajou a prima Vulpy a prosseguir:
“Mas o que tinha no pacote, que estória é essa?”
“Já te conto, deixa eu terminar com o assunto da pizza. Bom, como não
tinha energia, eu pedi pro Paulinho acender um toco de vela e colocar uma tábua
no vão do barraco pra não entrar vento. Ficou faltando o refrigerante. Então eu
tive a ideia de colher alguns limões do barranco do quintal e fazer uma limonada.
Eu coloquei dentro de uma garrafa de tubaína e joguei um pouquinho de
bicarbonato.”
“Por que isso, Vulpy?”
“Pra formar um pouco de bolhas e o Juninho pensar que era
refrigerante.”
“Nossa, você é mesmo uma raposa muito matreira!”
“Não é isso, Foxy, eu não sou espertalhona, quer dizer, eu tenho de ser
assim pra sobreviver, né? Quando a gente sente fome a gente faz de tudo...”
“Eu entendo, Foxy, eu só estava brincando. Foi mal...”
“Bom, todo mundo comeu. Rimos bastante e quando eu olhei pro lado, o Juninho
tinha dormido na cadeira. O rostinho dele estava plácido e sereno. Ele dormiu
de barriguinha cheia e com o rosto tranquilo, achando que tinha comido pizza de
verdade, ovos de páscoa e refrigerante. Dai eu o coloquei na caminha dele, o
cobri bem. Dei um beijinho no focinho dele e disse bem baixinho: Meu anjo,
algum dia eu compro uma pizza de verdade só pra você, eu prometo!’”
“Você deveria ter me avisado que estava passando por necessidades,
Vulpy, você sabe, eu também sou uma raposa pobre, mas a gente sempre dá um
jeito.”
Vulpy abaixou a cabeça e não quis demonstrar que estava se sentindo,
fragilizada com a situação. Ela sempre preferia lutar e ser criativa para
enfrentar as situações adversas.
“Mas, e o lance do pacote, Vulpy?”
“Bom, naquela noite eu fui dormir muito pensativa. Fiquei me lembrando
daquelas palavras do David Luiz depois do jogo da copa de novo e não conseguia
dormir. Fiquei pensando como o macaco Chitão era falso. Ele não cumpriu nada do
que havia prometido nas eleições. Nada de escolas, creches, esgoto, água, posto
de saúde, asfalto, eletricidade, moradia e segurança... Daí comecei a ver como
ele havia mentido e enganado tanta gente com aquele palavrório todo, aquelas
micagens, aquelas caretas e piruetas, aquelas cambalhotas...
“Mas você não tinha votado nele, Vulpy?”
“Só na primeira eleição, mas depois fiquei com raiva de ter votado nele.”
“E como você continuou trabalhando na campanha dele?”
“Porque eu acreditava nas ideias de justiça social, igualdade,
oportunidade para todos e via que as pessoas eram sinceras. O Chitão até me
ofereceu um cargo de assessora.”
“Sua espertalhona, aposto que era por causa das promessas dele...”
“Ah, Foxy, eu fiquei cansada de ver tanta gente cega. A bicharada toda
parecia estar enfeitiçada, hipnotizada. O Chitão prometeu mundos e fundos pra
todos os bichos. Disse que não ia faltar milho para as galinhas, banana para os
macacos, cenoura para os coelhos e até capim para os jumentos. Aqueles bichos
eram muito ingênuos, Foxy. Até aquela cegonha cretina e vingativa estava lá,
toda metida, exaltando as “qualidades” do Chitão. Quando ele falava, a
bicharada toda delirava.
“É, mas também você deu sopa pra cegonha e serviu num prato, lembra?”
“Dei mesmo, ela merecia, mas depois eu conto essa história...”
“E o que você tinha de fazer como assessora do Chitão, Vulpy?”
“Bom, além de eu organizar os comícios, eu tinha de resumir as notícias
e fazer relatórios. Eu aceitei esse cargo, porque era a única maneira de eu
ficar de olho naquele macaco cínico. Foi aí que eu fiquei muito desconfiada do
pacote e bolei um plano.
“Mas o que tinha nesse, pacote, raposa de Deus? Fala logo!”
impacientou-se Foxy, novamente franzindo os lábios e colocando as mãos no
peito.
“Então, Foxy, era um pacote pardo, com o papel mole, dava pra sentir um
pouco o que tinha dentro; tateando dava para perceber que tinha alguns clipes
de papel... Eu achei que tinha algo muito estranho nesse pacote, porque o
pessoal do partido pediu pra eu o levar diretamente para o Chitão o mais rápido
possível e não deixar cair nas mãos de ninguém absolutamente, principalmente do
pessoal da imprensa.
“Será que eram dólares?” indagou Foxy?
“No começo eu achei que era dinheiro ou drogas, sei lá, mas não era
nada disso, era muito pior, muito pior, Foxy,” respondeu, colocando uma das
mãos na cintura e balançando a ponta das patinhas.
“Tá, Vulpy, mas o que aconteceu, conta logo, que já está chegando a
hora de eu descer.”
“Bom, é claro que eu percebi que não era coisa certa. Então eu peguei
aquele pacote e fui levar no jantar comemorativo pela vitória da reeleição do Chitão.
Dai eu bolei um plano. O Chitão estava num salão cheio. Todos estavam
comemorando, e o pessoal da imprensa estava cobrindo tudo. O Chitão estava numa
mesa no mezanino. Ao lado dele tinha uma fileira de balaústres de madeira.
Então eu cheguei perto dele, dizendo bem alto: ‘Senhor, senhor, tem uma
encomenda aqui, disseram que era só para o senhor abrir, que isso pertence somente
ao senhor e que ninguém mais pode mexer.’”
“E dai, e daí, que ele disse?”, impacientou-se Foxy, com os olhos
arregalados e os lábios franzidos.
“Dai ele fez uma coisa que jamais deveria ter feito, Vulpy, jamais,
jamais!” enfatizou Vulpy com os olhos vermelhos de raiva.
“Que ele fez, que foi?”
“Foxy, ele disse: ‘Cala a boca e fale baixo, sua cadela!’”
“Ele te xingou disso, meu Deus! Eu não queria estar por perto”
“Você sabe como eu fico indignada quando alguém me confunde com uma
cadela, Foxy. Você sabe como isso me enlouquece. Eu não sou uma cadela, eu sou
uma raposa, raposa...”
“E daí, que você fez?”
“Quando ele disse isso, o sangue
subiu pela cabeça. Eu senti as veias do pescoço incharem e meu coração disparou.
Então eu fiquei ensandecida e pensei rápido. Foi aí que eu estendi o pacote
para ele pegar. Quando ele estava segurando o pacote, eu fingi que escorreguei.
O pacote se rompeu. Dentro, havia um montão de papeis, envelopes e notas
fiscais. Aquilo tudo voou pelo salão. O
pessoa da imprensa começou a pegar tudo.”
“E o que havia nesses papéis, Vulpy?”
“Era relacionado com o lance da
carne.”
“Que lance da carne, menina? Fala
logo que eu já vou descer,” insistiu
Foxy, levantando a cabeça e olhando para fora do ônibus.
“É que o Chitão tinha usado um frigorífico pra
lavar dinheiro e financiar a campanha dele com verba ilícita.”
“E o que aconteceu depois?”
“O Chitão ficou apavorado, sem saber oque fazer; tentou recolher os papéis
caídos, mas eram muitos. Então eu olhei bem pra cara dele e disse ‘Você finge
ser nosso líder, mas sequer consegue cuidar de si mesmo!’ Enfim, Foxy. Agora
estão falando em inpeachement e em outras eleições.”
“E o que você vai fazer agora, Foxy?
“Agora eu estou pensando que não vale a pena perder amizades por causa
de posições políticas. Cada pessoa tem o direito de ter a posição política que quiser.
As pessoas são sinceras. Enquanto os políticos ficam fazendo conchavos e tramoias
e se dão bem, a gente fica brigando e perdendo amizades. Eu acho que a gente
deve combater a corrupção em todos os partidos e em todo lugar.
“É, faz sentido, Foxy. Eu concordo com você. Mas você desistiu da
política?
“Não, mas agora eu estou em outro partido. Lá é muito legal”, Foxy, eles dão coxinha pra
gente,” disse com um sorrisinho mefistofélico.
“Bem, Vulpy. Preciso descer. Meu ponto já chegou. Mas onde você está
indo com este outro pacote?”
“Vou comer umas coxinhas na sede do partido novo e levar este outro pacote
pra eles.”
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