Gilson Marcon de Souza
O recinto escuro, com
paredes encardidas e placas de reboco se despregando das colunas de cimento,
exalava um odor de mofo e bolor característico. A fumaça continua de tabaco
queimando, em meio a outras centenas de pontas de cigarros lançadas a esmo pelo
chão, impregnavam todo o ambiente, tornando o ar denso numa atmosfera acre e
sufocante. O bafio da fumaça e do fumo curtido chegava mesmo a magoar as
narinas sensíveis de quem tivesse a coragem de abrenhar-se naquele ambiente
malcheiroso e infectante.
Uma
placa de papelão úmido, estendida no chão frio e recoberta de algumas almofadas
emboloradas e puídas, servia tanto de cama como de pousadeiro. Era lá que Ranny
dormia, comia e trabalhava. Era ali que ele passava a maior parte do tempo
recostado, lendo algum livro, de preferência de ficção científica, mas também
de física quântica, teoria das cordas, universos paralelos, modelo padrão,
partículas subatômicas, experiências de quase morte, experiência fora do corpo,
vampiros, duendes, elfos, super-heróis modernos, mangás, ânimes e aceleradores
de partículas. Ranny, porém, se sentia extremamente frustrado por não saber bem
matemática, sobretudo as equações, sem as quais ele não poderia trabalhar no
seu novo projeto e aperfeiçoar-se se mais na linguagem c++.
Ranny
não se sentia totalmente satisfeito com seus projetos, a não ser pelo êxito que
estava obtendo em memorizar tantos alfabetos quanto ele pudesse. Ele já havia
decorado o alfabeto grego, hebraico, aramaico, árabe, cirílico; sem contar
milhares de ideogramas chineses, caracteres cuneiformes, hieróglifos egípcios e
maias. Em princípio, não achava muita utilidade no aprendizado desses sistemas
de escrita, mas com o passar do tempo, percebeu que esses conhecimentos o ajudariam
no aprendizado dessas línguas e estava persuadido de que esse exercício
intelectual certamente já o estava ajudando à medida que progredia em seu
algoritmo para desenvolver um motor de busca tanto intergaláctico como
interdimensional. Por enquanto os resultados customizados preliminares e os
filtros estavam ao seu favor.
Ranny era
superpoliglota e podia se comunicar com vários amigos do mundo inteiro pela
internet. Era isso que gostava de fazer nas horas que não estava trabalhando
como avaliador de jogos on-line e
videogames. Ele só não gostava de ficar esperando pelas respostas de seus
interlocutores virtuais. Achava extremamente deselegante deixar as pessoas
esperando por vários minutos pelas respostas. Achava que elas deveriam ficar
verdes, ou melhor, que deveriam deixar seus apelidos em verde, se não
estivessem dispostas a bater papo. Pois que ficassem vermelhas, sinalizando que
estavam ocupadas, ou então amarelas, quando estivessem ausentes. Ele
simplesmente odiava isso e decidiu excluir todos os amigos virtuais que não
seguissem essa regra básica de etiqueta nos bate-papos.
Seu sonho era poder
comprar um óculos de realidade virtual e poder testar os jogos em ambiente 3D,
mas para isso ele teria de juntar muitos bitcoins
nos sites que ofereciam pequenas tarefas.
Ranny se sentia
faminto; precisava comer algo antes de sair, pois já havia planejado sua ida à
loja de produtos eletrônicos com várias semanas de antecedência. Planejara tudo
meticulosamente: quais ruas deveria percorrer; quais esquinas deveria evitar;
em que beco escuro ele deveria se meter no caso de ser visto por alguma pessoa;
qual deveria ser a melhor rota de fuga nesse caso; e, até mesmo, com que roupa
deveria estar vestido. Semanas de planejamento. Nada deveria dar errado: ele
não poderia ser observado por ninguém absolutamente. Por isso separou um
sobretudo preto; um suspensório listrado; uma camiseta também preta, sem
nenhuma estampa que pudesse chamar a atenção; um par de botas parecidas com as
de caubóis e uma bermuda comprida, suficiente para cobrir suas pernas esguias
até abaixo dos joelhos, mas deixando à mostra suas canelas.
Era um tanto
encurvado, talvez pelos anos de atividades em frente ao computador e já com um
pequeno abdome ressaltado, mas ainda mantinhas as pernas morrudas fortes. Não
era amante de caminhadas, mas desde criança gostava de praticar saltos. Chegou
até a ganhar uma medalha pelo primeiro lugar de salto em altura na escola e
outra medalha pelo segundo lugar em salto à distância. É verdade que ele se
preocupava com a saúde, por isso decidiu cortar um pouco das pizzas e
hambúrgueres e continuar praticando saltos, mesmo que dentro de casa.
Já perto de completar
vinte e dois anos, achava que deveria começar a cuidar mais de si; por isso
decidiu cortar um pouco dos carboidratos e comer mais proteínas e continuar
praticando saltos ̶ largar o cigarro e o café, os pacotes de
batatas fritas e salgadinhos ficaria para mais tarde.
A casa, ou melhor, a
toca onde vivia, trabalhava e comia, estava repleta de fios, de tal modo que
uma das tarefas que mais ocupava a sua atenção era separar cuidadosamente as
teias de fios daquele verdadeiro emaranhado de cabos, pontas, plugues, tomadas,
extensões. Ele não entendia esse mistério, qual seja, bastava levantar-se para
atender ao telefone ou ir até o banheiro, que na volta os fios já estavam
repletos de nós e laços ̶ tudo embaraçado. Às vezes chegava mesmo a
imaginar que os fios e cabos tinham vida própria e se emaranhavam
propositalmente para deixar sua vida tediosa ainda mais difícil. Eram dezenas
deles: fios de baterias, do mouse, do teclado, do fone de ouvidos, dos
videogames em meio a outros tantos cabos e adaptadores de vários tipos. Se ele
não os dispusesse na mais perfeita ordem, seria impossível identificar
devidamente a que dispositivo pertencia tal cabo ou fio. Portanto, classificar
e separar cada extremidade com seus respectivos equipamentos era uma tarefa
fastidiosa, porém necessária.
Ranny não queria
passar pela inconveniência de ter de sair para comprar um fio ou cabo novo para
substituir algum que houvesse se rompido por torções inadvertidas. Um fio
partido implicava uma incursão nova pelas ruas, e Ranny empregava todo o
esforço possível para nunca jamais ter de sair de casa. Mas desta vez era
inevitável – um copo cheio de refrigerante havia caído por todo o teclado e só
não danificou os componentes internos de seu computador portátil graças ao
salto certeiro que dera, segurando-o com precisão antes que entornasse aquele
líquido totalmente e fizesse um estrago ainda maior. Mas não havia jeito: a
solução era comprar pelo menos um teclado externo para poder continuar seu
trabalho. Além disso, já estava em seus planos comprar, também, um ponteiro a
laser.
Ranny estava ansioso
para reproduzir a experiência das fendas duplas e precisava de um emissor de
raio laser. Ele não entedia por que cargas d’água não havia colapso das ondas
quando as pessoas as observavam nos vídeos que vira. Não deveria ser assim: se
houvesse alguém observando, os padrões deveriam ser de partículas e não de
ondas. Isso o intrigava e o deixava pensativo por horas. Ele precisava entender
esse processo, porque havia conseguido interceptar várias palavras em seu motor
de busca. Ele sabia que seu algoritmo estava funcionando, pois os resultados
estavam dentro de um padrão lógico e seguiam um código binário. Tudo que
precisava fazer era atribuir um fonema para cada símbolo que estava sendo
formado, e ele estava perto de desvendar isso. O programa que desenvolvera para
tentar atribuir os fonemas, vogais e consoantes aos códigos binários funcionou
algumas vezes, e ele havia anotado padrões que indicavam para uma sequência
lógica de um idioma, mas ficava intrigado, pois, como na experiência com as
fendas duplas, só conseguia obter alguma mensagem quando estava observando o
experimento e isso jamais ocorria enquanto seu programa estava rodando sozinho.
Já estava chegando a
hora de sair; a loja estaria fechada, mas Lepo prometera estar lá para guardar
caixas de produtos eletrônicos nos balcões, mesmo depois do expediente. Tudo
que Ranny deveria fazer era bater e se identificar. Lepo dera sua palavra de
que estaria dentro da loja para organizar as mercadorias.
Agora Ranny precisava
comer alguma coisa. Estava faminto. Precisava comer algo e urinar. Ranny nunca
saía se não fizesse isso. Foi ao banheiro e certificou-se de que havia urinado
totalmente. Não podia deixar de expelir uma gota de urina sequer – não podia.
Primeiro, porque ele não queria passar pelo constrangimento de urinar nas
calças se passasse por algum tipo de situação ameaçadora; segundo, porque não
queria contaminar ninguém com sua urina.
Não havia mais uma
fatia de pizza sequer. Também não havia mais nenhum pacote de batatas frias e
salgadinhos. Esse problema não era tão importante, pois ele poderia encomendar
essas coisas pelo smartphone ou pela internet sem precisar sair, mas ele
precisava comer algo. Ranny deu alguns passos para trás, colocou sua toca ninja
e seus óculos escuros e quase caiu ao tropeçar no tabuleiro de RPG. Recobrou o
equilíbrio, olhou fixamente para a parede e deu um salto abruto, porém
certeiro, e virou-se imediatamente, esfregando o estômago com ar de satisfação
e com a bocarra entreaberta, ainda por engolir metade de um grilo, cujas asas
esganiçadas pararam de tremelicar e foram minguando até que o bicho todo fosse
engolido totalmente sem que Ranny sequer o mastigasse. Era o seu dia de sorte,
pois com mais dois ou três saltos, conseguiu capturar, com sua enorme língua
distendida, uma mariposa desatenta e uma suculenta barata marrom.
Já estava se sentindo
quase preparado para sair, caminhou até a porta, colocou a mão na tranca
rústica de madeira forte, bem aparelhada e firme, e a puxou com força por
várias vezes. Colocava a mão na fechadura bem trancada da porta, forçava a
tranca e a voltava à posição de início novamente. A porta não se abria, até que
se lembrou de um calço extra que havia metido firmemente sob ela ̶ mas
uma força parecia o impelir para trás. Tentou várias vezes, entrecruzou os
dedos à frente dos lábios, respirou profundamente por vários segundos, ensaiou
uma nova saída, mas voltou ao computador: teve a ideia de tentar mais uma vez
deixar o programa rodando enquanto estivesse fora. Fixou os olhos na tela e
digitou em um campo de pesquisa: “mensagem para a humanidade”.
Ranny era um exímio
digitador, e a resposta veio quase na mesma velocidade com que era capaz de
digitar, porém num padrão helicoidal semelhante a uma tira de DNA, embora com
pares de sequência apenas binários. Ranny sentiu um calafrio percorrer lhe a
espinha. Desta vez parecia ser uma mensagem clara. Bastava agora inserir os
códigos no seu programa e esperar pela conversão. Repentinamente, os milhares
de zeros e uns começaram a dançar freneticamente na tela, até que finalmente
uma sequencia do que parecia ser duas palavras se formou. Ranny não demorou
muito tempo para entender que se tratava de um idioma. Bastou que inserisse o
resultado em uma biblioteca de fonemas, e, finalmente, o resultado saltou aos
seus olhos atentos: ME PHOBEISTHE.
Um misto de curiosidade
e satisfação quase o fez esquecer-se de que já era hora de sair e ele não mais
podia protelar o seu egresso, mas seus pensamentos estavam quase todos voltados
para o significado dos termos que acabara de surgir na tela de seu computador.
Ranny quis acender um cigarro ̶ ele sempre fazia isso como um rito de
celebração quando sentia que obtinha alguma conquista, como vencer um oponente
num videogame ou RPG, ou finalizar algum programa importante, ou escrever uma
resenha para comentários de algum livro ou site, mas não havia mais nenhum.
Vasculhou os bolsos de várias roupas e tentou achar algum cigarro perdido em
algum canto, mas tudo o que encontrou foi um toco já meio embolorado e amassado
e não hesitou em acendê-lo e aproveitar para inalar profundamente o restante de
fumaça que aquele resto de cigarro pudesse ainda produzir.
Estava afoito para
continuar suas pesquisas; tudo que precisava fazer agora era digitar os termos
num motor de busca comum e estudar os resultados. Ele não podia esperar mais
para sair ̶ era pontualíssimo e não tolerava segundos de
atraso sequer. Mas ainda teve tempo para fechar diversas janelas abertas na
tela de seu computador, entre as quais vários sites que exibiam imagens cosplay
e hentais. Ranny olhou para alguns hentais com um olhar cobiçoso, mas decidiu
que aquela definitivamente não era hora para pensamentos lúbricos.
Assim que finalmente
conseguiu abrir a porta maciça, seu coração disparou, sentiu cólicas, tremores;
o rosto começou a suar, as mãos tremiam e os lábios perderam a cor. Ranny
pensou em abortar seus planos, mas se fizesse isso não poderia dar andamento às
suas pesquisas. Parecia que as laterais de seu crânio estavam sendo esmagadas
por uma pressão insuportável. Sua têmpora parecia estar sendo comprimida por
uma força descomunal. Ranny tinha a impressão de que a cada vez que saia estava
diminuindo de tamanho, ou então as pessoas estavam crescendo. Sentiu-se enjoado
e ansioso, e se não fosse por um resquício de autocontrole que ele ainda
conseguia reunir, teria vomitado no momento mesmo em que pusera os pés para
fora da porta.
A ansiedade que
estava sentindo teria dado lugar a um terrível sentimento de pânico, se ele não
tivesse se valido do pouco de controle sobre suas emoções, mas, a cada vez que
saia, sentia que estava perdendo cada vez mais o domínio sobre seus
sentimentos. A amplidão do espaço externo, as luzes das ruas, os faróis dos
carros, os sons agudos pareciam estar distorcidos em um turbilhão de ruídos
desconexos e imagens retorcidas num campo de visão afunilado. Parecia ter
perdido a visão periférica e tudo que conseguia ver era um rasto de luzes
alongadas e embaçadas em meio a um barulho ensurdecedor, mas o que mais levava
o limite sua fobia quase indomável eram as pessoas: elas eram ameaçadoras.
Ranny sentia pavor delas. Tinha medo de ser pisado, chutado, ridicularizado,
mas, se pudesse escolher, preferiria o sentimento de rejeição e indiferença,
embora isso também o magoasse. De qualquer maneira, preferia ser ignorado por
elas a ser observado em suas atividades. Ranny sentia dificuldade em realizar
qualquer tarefa se sentisse que alguma pessoa o estivesse observando. Por isso
estudou bem o caminho que deveria percorrer para não precisar pedir informações
ou direções.
Ranny respirou um
pouco e tratou de ser o mais rápido que pudesse, preferindo percorrer locais
mais escuros e perto de becos, travessas ou vielas, esgueirando-se por trás de
placas de sinalização, lixeiras, paradas de ônibus ou qualquer outro obstáculo
que pudesse lhe servir de um eventual esconderijo. Ter respirado um pouco o
ajudou, e Ranny caminhava a passos largos, intercalados com saltos precisos,
porém sinuosos. Ele preferia seguir sua rota de forma oblíqua, saltando de um
canto a outro para evitar dar de topo com qualquer pessoa.
Já estava quase
chegando à lojinha de quinquilharias eletrônicas de Lepo, e resolveu parar
atrás de uma caçamba de detritos para respirar um pouco mais antes de entrar,
mas isso não foi uma boa ideia. Ranny quase perdeu os sentidos ao sentir algo
esfregar-se em suas costas e uma sensação quente é úmida percorrer-lhe o
pescoço. Virou-se terrivelmente assustado para ver do que se tratava e
conseguiu ver um rosto enorme, com olhos perquiridores e uma imensa língua que
destilava uma saliva espessa e pegajosa. Ranny teve tempo de ver que se tratava
apenas de um cachorro curioso que havia lambido toda a extensão de sua espinha
e farejado seu corpo inteiro com um focinho inquiridor e gelado. Ranny teria
urinado ali mesmo se não tivesse feito isso antes de sair de casa, mas
conseguiu se esquivar daquele cão desencaminhado e errante, que parecia querer
mais satisfazer sua curiosidade canina do que lhe causar algum mal. Não foi
difícil para ele saltar para um local mais seguro, deixando aquele animal
abelhudo e indiscreto encontrar o caminho do qual se desgarrara.
Sentiu-se, de certo
modo, aliviado por vencer esta etapa. Já estava perto de conseguir entrar.
Queria acender um cigarro, mas não havia mais nenhum e isso também o exporia
ainda mais. Ficou preocupado por não ter cigarros, pois ele jamais entraria em
um bar para os comprar. Mas sua preocupação deu lugar a certo alívio quando
passou as mãos no peito e pôde tatear o volume de um maço de cigarros ainda
fechado em um de seus bolsos. Sua ideia de deixar um maço escondido para o caso
de alguma emergência deu certo. Talvez um pouco de nicotina lhe desse algum
ânimo para prosseguir. Acendeu um cigarro e o tragou com tanta sofreguidão, que
em menos de um minuto já havia fumado mais da metade e se dado por satisfeito,
dispensando o restante e apressando os passos para logo bater à porta.
Ranny estava
ensaiando o que dizer; não queria passar por um tolo. Limpou a garganta e
tossiu e quis adotar uma postura de quem sabia exatamente o que comprar. Não
queria que as pessoas o achassem estúpido, indeciso ou reticente. Queria
comprar logo o que precisava, sair dali o mais rápido possível e voltar para o
seu refúgio.
Não demorou até que
Lepo abrisse a porta, mas a acolhida efusiva não o fez sentir-se mais
calmo ̶ pelo contrário. Ranny conhecia Lepo apenas
pelos bate-papos da internet e nunca o tinha visto pessoalmente. Ficou imóvel
quando viu que se tratava de uma lebre. Seu coração disparou, sua respiração
tornou-se curta e ofegante. O ar lhe faltava e novamente começou a suar frio.
Seu rosto parecia pegar fogo. Ranny não podia se controlar e seu corpo todo
tremia. Ele queria se conter, mas quando viu que se tratava de uma lebre, se
arrependeu profundamente de ter saído de casa; queria dar um passo para trás e
sair correndo, ou pulando, mas ficou estático, imóvel, petrificado. Não
conseguia se expressar e emudeceu. Ele sempre ficava desconcertado quando
conhecia alguém.
Lepo era uma lebre
alta, forte. Pelo tônus de seus músculos, era fácil depreender que se tratava
de um jovem atlético e amante de exercícios físicos. Seus pelos castanhos, bem
cuidados, também era evidência de que Lepo era um jovem cuidadoso com a
aparência e, de certa forma, vaidoso. Lepo era amante de tudo que se
relacionava com novas tecnologias, cultura popular, filmes de aventura e ficção
científica, quadrinhos e RPG. Seus olhos avermelhados arregalaram-se, e suas
pupilas se dilataram quando viu o estado de pânico e pavor de Ranny. Lepo
apressou-se em fazê-lo entrar, puxando-o com força por imaginar que tivesse
sofrido algum assalto ou que estivesse passando por algum problema de saúde.
Pela respiração arfante e esbaforida, imaginou que pudesse estar sofrendo de um
ataque de asma e logo tratou de acolhê-lo.
Ranny simplesmente
não conseguia falar. Seus pensamentos embotados e sua respiração ofegante o
deixaram prostrado, apenas tentando respirar e se refazer.
“Mas o que aconteceu
com você, cara?”, indagou Lepo, com expressão de grande preocupação, cuidando
para encontrar um assento qualquer para acomodar o amigo virtual, com quem
mantivera horas de conversas on-line,
mas com que ainda não havia se encontrado pessoalmente.
“Você foi assaltado? O que houve?”
Ranny não conseguia
reunir forças para falar.
“Calma, amigo,
respire um pouco, sente-se aqui e relaxe. Seja lá o que aconteceu, você está
bem agora”, afirmou Lepo, com voz firme e acolhedora.
A voz meiga, suave e
gentil de Lepo fez com que Ranny recobrasse um pouco de forças e se sentisse
encorajado para entrar e se assentar.
Ranny queria mesmo
comprar tudo que precisava logo e sair dali o mais rápido possível.
“Desculpa, Lepo, eu
não estava me sentindo bem; levei um susto com um cachorro que apareceu no meio
do caminho”, tentou disfarçar.
“Eu entendo, esses
cachorros vivem à solta e geralmente são mansos. Vivem a procura de algum resto
de comida.”
Lepo conseguia falar
naturalmente num tom de voz tão acolhedor e suave, que conseguia deixar Ranny
mais calmo. Seu tom de voz era relaxante. Lepo era uma lebre alta, de gestos
firmes e tranquilos, da mesma idade que Ranny. Sua atitude gentil e acolhedora
logo foi fazendo com que Ranny se sentisse mais à vontade. Mas o que o deixou
mais tranquilo foram os equipamentos eletrônicos. Ranny aos poucos foi se
acalmando e se distraiu com os diversos deles. Se pudesse levaria todos.
“Quer um pouco de
água?”, perguntou Lepo, colocando as duas mãos para trás e se inclinando para
perto de Ranny. Lepo o olhava com atenção, abaixava o rosto e tentava observar
se Ranny havia sofrido algum ferimento. Seu olhar atento deixou Ranny um tanto
constrangido. Lepo o observava atentamente, de alto a baixo, como se estivesse
o revistando com os olhos.
“Você tem vários
jogos, não é mesmo Lepo?”, indagou Ranny, sentindo-se recobrado, mas recusando
o copo de água.
“Sua loja é bem
organizada!”
“Eu tenho de tudo um
pouco. Não tenho os melhores produtos, mas são mercadorias boas. Eu preciso ter
mercadorias que atendam aos bolsos e aos anseios das pessoas. Se eu tiver
coisas muito caras, ninguém compra.”
“Mas como você conseguiu
organizar esta loja, Lepo. Você ainda é tão jovem!”
“Sabe, Ranny, no
começo foi muito difícil: ninguém me ajudava. Eu comecei vendendo coisas numa
sacola, até que pedi para meus pais se eu poderia usar esta garagem velha. No
começo eles não queriam, mas depois aconteceram uns lances e eles tiveram de
mudar de ideia”.
“Que lances, Lepo?”
“Ah, deixa pra lá,
Ranny, não quero, nem gosto, de me lembrar desse período tão difícil e cheio de
trevas pra mim, esqueça isso”.
Os pensamentos de
Ranny ainda estavam confusos, e ele quase não se lembrava do que queria
comprar. Pensou um pouco e lembrou-se do teclado.
“Ah, sim”, gaguejou,
“eu gostaria de levar um teclado bem macio”, fez questão de frisar, “e também
um...., também um...ah, sim, um ponteiro a laser”
“Só isso mesmo que
vai querer, Ranny?”
“Se eu pudesse eu levaria
mais coisas, Lepo, mas meu dinheiro está curto.”
“E o que mais você
gostaria de levar?”
“Acho que você não
vai ter. Eu sempre quis um óculos de realidade virtual, queria tanto ter um
desses!”, suspirou Ranny, vasculhando todas as estantes com os olhos e
observando todos os produtos à mostra: consoles, vídeogames, smatphones,
monitores...
“Nossa, cara, você
tem uma coleção inteirinha de figuras de ações do Star Wars!”, suspirou Ranny.
“Sim, e tenho também
vários bonecos do Senhor dos Anéis.”
Lepo pensou um pouco
e disse:
“Você gostaria de ter
um óculos de realidade virtual?”
“Sim, mas ainda não
tenho grana para comprar”, lamentou-se, cabisbaixo.
“Ranny, pode ficar
com minha coleção de figuras de ação e com meus bonecos. Eu gosto muito deles,
mas sei que vão estar em boas mãos, se você ficar com eles”, afirmou Lepo, com
o olhar perdido e com a voz meio embargada. “Eu gostaria muito que você ficasse
com eles”.
“Não sei se posso
aceitar, Lepo, você dever ter colecionado tudo isso com muito esforço e
carinho.”
“Eu sei, Ranny, mas
eu também preciso de mais espaço para colocar outras mercadorias, e sei que vão
ficar em boas mãos. Bom Ranny, aqui está o teclado, as letras são grandes e as
teclas são macias. Você me disse que tem as vistas cansadas, e este teclado tem
letras grandes. É o último que eu tenho. Eu não tenho um ponteiro a laser, mas
tenho este chaveiro com um laser bem concentrado.”
“Está perfeito, Lepo,
é exatamente disso que eu preciso.”
“É para sua
experiência com as fendas duplas?”
“É, Lepo, eu preciso
entender melhor essa experiência – se é que alguém já conseguiu entender.”
“E por que você
precisa entender isso, Ranny, o que isso tem a ver com o motor de buscas que
você está criando?”
“Eu não sei, talvez
isso me ajude a entender. Mas é que um fenômeno semelhante ocorre com as minhas
experiências”, respondeu pensativo.
“Como assim, Ranny?”,
insistiu Lepo, colocando uma cadeira mais próxima de Ranny e se esforçando para
entender.
“É que quando eu
estou na frente do computador, observando a experiência, eu consigo algum
resultado, mas se eu me afastar dele, não consigo resultado algum.”
“E você já conseguiu
algum resultado?”
“Consegui alguns, mas
não tive certeza se era coincidência ou algum tipo de interferência. Mas hoje
eu tenho certeza de que recebi uma mensagem.”
“Uma mensagem de
onde, Ranny?”
“Isso eu não sei
ainda, mas com certeza, de algum canto do universo ou de outra dimensão.”
“Que interessante,
Ranny! Sabe, eu sempre digo que o universo fala com a gente o tempo todo, por
meio de tudo: pode ser uma música, uma flor, um lago tranquilo, um animal, o
barulho da chuva e até por uma pessoa”, brincou, “só que eu acho que ele fala
baixinho, e a gente tem de prestar bem atenção no que ele está tentando dizer.
Mas eu estou curioso para saber que mensagem você recebeu.
“Antes de eu sair,
Lepo, tentei mais uma vez, e surgiu uma mensagem estranha”.
“Que mensagem? Cara,
me conta, me conta...”
“A mensagem era: ME PHOBEISTHE.”
“E o que quer
dizer?”, indagou Lepo, arregalando os olhos, coçando o queixo e eriçando as duas
enormes orelhas.
Ranny notou o
interesse de Lepo e respondeu, prestando atenção no movimento de suas longas
orelhas:
“Eu ainda não sei,
Lepo, não me parece uma expressão estranha, parece familiar, mas eu não me
lembro de ter visto qualquer coisa parecida nos idiomas que eu conheço. Eu
coloquei esses termos em alguns motores de busca comuns, não no meu, e não tive
tempo de ver os resultados. Vou fazer isso assim que voltar”, respondeu Ranny,
fazendo uma pausa.
“A não ser que...”,
pensou mais um pouco, “talvez eu devesse transliterar essas letras latinas para
vários outros alfabetos. É isso, Lepo, vou fazer isso imediatamente quando eu
voltar.”
“Então depois me diga
o que descobriu. Agora fiquei curioso.”
“Pode deixar, Lepo.
Se eu conseguir decifrar, você será o primeiro a saber.”
“Ranny, eu queria
mostrar uma coisa a você, cara. Acho que você vai gostar”.
“O que é, Lepo?”
“Você quer um óculos
de realidade virtual?”
“Sim, eu sempre quis
ter um, Lepo”.
“Então, cara, você
mesmo pode fazer um”.
“Como é isso, Lepo?”,
interessou-se Ranny,
“Olha só, você mesmo
pode fazer o download de um molde,
recortar uma placa de papelão e inserir as lentes. Então você vai poder jogar
seus jogos num ambiente de realidade virtual: tudo em 3D. Além disso, imagine
só: você vai poder viajar pelo espaço, por dentro do corpo humano, ver teatros
e museus e interagir com pessoas - tudo virtual.”
Ranny ficou muito
pensativo e interessado na proposta.
“Espere, Ranny, eu
tenho um molde que baixei aqui, quer tentar fazer um?”, perguntou Lepo, fazendo
um sinal com os dedos para cima e esfregando as mãos. Lepo abaixou-se e apanhou
uma pasta, retirou alguns papéis, tesoura e cola e colocou tudo sobre o balcão.
“Quer tentar fazer
um, Ranny?”
“Como é isso?”
“Basta você recortar
nas linhas pontilhadas e depois colar e dobrar tudo. É fácil demais.”
Ranny coçou a cabeça
e pensou um pouco. Achou a proposta viável e iniciou a tarefa recortando uma
tira de papelão, mas começou a tremer e desistiu. Ficou nervoso por estar sendo
observado. Ranny se atrapalhou e quase estragou uma tira inteira. Lepo o
observou com compaixão, mas não o ajudou. Em vez disso o encorajou a prosseguir.
“Vamos, Ranny, você
consegue, bastar ter cuidado de cortar nas linhas pontilhadas”, disse Lepo, com
um tom de voz quase que monótono.
“Mas não precisa de
lentes, Lepo?”
“É verdade, mas eu quero
dar as lentes a você, Ranny, não se preocupe. Assim que acabar, vamos inserir
as lentes e tudo vai ficar prontinho.”
Ranny sentiu-se
desafiado a terminar a tarefa, mas estranhou a gentileza de Lepo e ficou
desconfiado de suas intenções. Não entendia por que Lepo estava cada vez mais
gentil e imaginou que talvez estivesse querendo empurrar alguma mercadoria.
“Então quer dizer que
eu vou poder interagir com as pessoas sem ter contato com elas? Isso seria bom
demais, bom demais!”
“Sim, Lepo, você pode
criar um avatar, pode conversar com qualquer pessoa de qualquer lugar do mundo,
além de poder jogar também”.
“Eu gostaria tanto de
poder interagir com as pessoas deste modo, Lepo, é meu sonho, é tudo que
quero”, suspirou Ranny com o olhar distante e perdido.
“Por que você quer
interagir com as pessoas desta maneira, Ranny?”
“Acho que posso
confiar em você, Lepo. Você é um cara Legal. Acho que posso me abrir com você”.
“Claro que pode,
Ranny.”
“Sabe, Lepo, eu tenho
medo das pessoas, tenho pavor, tenho pânico, verdadeira fobia. Eu não consigo
me relacionar com elas”, disse, Ranny, com os olhos cheios de lágrimas.
“Você não gosta das
pessoas, Ranny?”
“Não é isso, não é
isso. Na verdade o que eu sinto por elas é uma mistura de amor e medo. Poderia
resumir assim: um forte desejo de ser aceito por elas e um forte medo de ser
rejeitado. Então, se eu tivesse um óculos desses, poderia ir a qualquer lugar
virtualmente. Poderia falar com as pessoas, interagir come elas, sem me
preocupar.”
Lepo reclinou-se na
cadeira, apoiou o rosto com a mão direita, inalou todo ar que pôde e pensou por
alguns instantes. Ele não sabia o que dizer.
“Você sempre sentiu
isso, Ranny, sempre se sentiu assim?”
“Bom, quando eu era
criança, eu não gostava de esportes coletivos. Não gostava de participar de
atividades com outros caras. Eu preferia coisas que eu pudesse fazer sozinho,
como andar de skate, soltar pipas, saltar, ler... essas coisas, mas eu não
sentia tanto medo. As pessoas me achavam esquisitão e brincavam comigo. Elas me
chamavam de sapo lelé, sapo chulé, sapo mané e gostavam de me chutar. Mas eu
não me importava muito com isso. Só ficava chateado quando me chamavam de sapo.
Eu não sou sapo, cara, eu sou rã!”
“Eu sei como é isso,
Ranny, também fico chateado quando me chamam de coelho”.
“Mas quando eu estava
ficando adolescente, e comecei a entender mais as coisas e fiquei muito triste
com um lance”.
“Que lance, Ranny?”
“Uma vez, eu estava
treinando saltos numa cama elástica, daí um carinha se aproximou de mim, interessado no
que eu fazia. Ele queria aprender a saltar e quis conversar e fazer amizade.
Ele se aproximou de mim sem medo, e logo foi puxando conversa. De repente, a
mãe dele se aproximou e disse umas coisas que me magoaram muito. Depois disso
eu fiquei muito triste e mais recolhido.”
“E o que ela disse,
Ranny?”
“Ela começou a gritar
com ele e disse assim: ‘Filho, sai de perto desse sapo nojento! Você não sabe
que esse bicho é venenoso? Não sabe que se ele mijar nos seus olhos, você vai
ficar cego?’”
Lepo se limitou a
balançar a cabeça de um lado para outro, em sinal de reprovação, com os olhos
cheios de lágrimas, as quais tentou enxugar, esfregando os olhos com as duas
mãos e virando a cabeça de um pouco para o lado.
“Depois disso”,
prosseguiu, “eu comecei a achar que as pessoas não gostavam mesmo de mim. Eu fiquei
convencido de que talvez eu fosse mesmo venenoso. Então comecei a evitar as
pessoas e pensar nisso. Achei que eu pudesse fazer mal a elas com algum tipo de
veneno que talvez eu tivesse, e, ao
mesmo tempo, achei que as pessoas também poderiam me fazer algum mal por causa
do meu veneno. Então, eu fiquei com medo de fazer algum mal a elas, e com medo
de que elas me tratassem mal”, tentou explicar, Ranny, confuso em seus
pensamentos e atropelando as palavras.
“Que bobagem, Ranny,
em primeiro lugar, você não é sapo, você é rã. Em segundo lugar, rãs não têm
veneno.”
“Talvez eu seja um
tipo de rã venenosa, Lepo. Mas, mesmo assim eu ainda conseguia sair de casa e
me relacionar com as pessoas. Até que, então, aconteceu uma terceira coisa”,
disse Ranny com um olhar melancólico e com o rosto triste. Sua feição mudou e um
semblante de angústia e prostração transfigurou sua fisionomia.
“Acho que devo dobrar
nesta marca, certo, Lepo?”
“Exato, Ranny, esta é
a última dobradura; agora basta colar, mas antes vamos inserir as lentes”,
respondeu Lepo, coçando o rosto.
“Eu só tenho dúvida sobre a posição das
lentes, Ranny, não sei se há uma lente é para o lado direito e a outra, para o
esquerdo, mas vamos tentar assim mesmo, se não der certo, a gente inverte.”
Assim que o
dispositivo estava pronto e bem
ajustado, Lepo fixou o celular nos encaixes e
ajustou a engenhoca sobre o nariz e começou a exclamar em voz alta:
“Uau, uau, deu certo, cara, que da hora, que coisa extraordinária, parece mesmo
que a gente está lá dentro!”
“Deixa eu ver, deixa
eu ver, cara?”, entusiasmou-se Ranny com um brilho nos olhos.
“Espera, você precisa
instalar um programa no seu celular”, explicou Lepo, tomando o telefone móvel
de Ranny de suas mãos e já digitando várias palavras e apertando algumas teclas
com apenas os dois polegares e com rapidez
inacreditável.
“Pronto, Ranny, agora
pode olhar”.
Ranny ajustou o que
parecia ser uma caixa de papelão quadrada no rosto e começou a girar a cabeça
de um lado para o outro. Olhava para cima, para o chão, inclinava a cabeça
e esquivava o corpo, como se estivesse
na iminência de ser atingido por algum artefato.
“É legal demais,
Lepo, que extraordinário, que cenário
lindo! Parece ser uma casa abandonada ou um castelo! Olha só, cara, dá pra ver
um livro em cima de uma mesa! Olha, cara, lá fora tem um penhasco e um jardim!
Dá pra ver o mar e um navio. Agora estou
dentro de uma nave espacial e dá pra ver os planetas e as galáxias. Cara,
passou um cometa bem pertinho da nave!”
Ranny e Lepo passaram
vários minutos estupefatos com o resultado e testando vários cenários virtuais,
quando Lepo colocou o experimento de volta no balcão e disse:
“É seu, Ranny, estou feliz
em saber que você gostou e isso vai
deixar sua vida mais alegre.”
“Obrigado, Lepo, não
sei como agradecer, era isso que eu queria”.
“Mas qual foi a
terceira coisa que deixou você mais chateado, Ranny?”
Ranny engoliu seco e
tentava achar uma linha de raciocínio, enquanto prestava atenção nas orelhas
irrequietas de Lepo.
“Quando eu tinha uns
dezesseis anos, quase dezessete, eu ouvi falar que muitas Lebres estavam
deprimidas e tristes; muitas delas estavam se atirando num lago. Então eu
fiquei pensando nisso. Uma vez, havia
escurecido e eu estava passando perto do lago, quando vi uma Lebre pensativa e
triste. Ela estava cabisbaixa a abatida.
Então eu me aproximei e tentei conversar.”
Lepo parou de mexer
as orelhas e se interessou no assunto.
“Começamos conversar,
Lepo, e aquela Lebre estava disposta a pular no Lago: ela disse que a vida dela
estava confusa, que as coisas não davam certo para ela e que, por mais que ela
tentasse, parecia que sua vida estava encoberta por nuvens negras e densas e
que ela não podia entender mais nada nem raciocinar direito. Então ela disse
que só restava pular no lago e acabar com aquele sofrimento.”
Lepo
continuava a ouvir atentamente cada detalhe.
Eu
falei com ela, fiz tudo que podia pra
tentar tirar essa ideia da cabeça dela, mas ela estava irredutível.
Disse que já tinha tomado aquela decisão e que estava a ponto de desistir de
tudo. Então eu estendi minha mão e consegui a segurar pelo braço. Eu não sabia
o que fazer. Ela já estava com um pé em um precipício. Eu não conseguia mais
segurar o braço dela. Estava ficando cansado. Queria ter argumentos, queria
falar, queria ter mais forças para segurá-la. Eu só conseguia dizer a ela: ‘Não tenha medo, não tenha medo,
amigo’, mas ela estava escorregando. Então eu me lembrei da letra de uma canção
muito bonita. Eu quis cantar para aquela lebre, mas minha voz estava sufocada,
pois eu estava nervoso e cansado. Então eu consegui falar um trecho da música,
mas eu não aguentei mais. Então meus braços estavam lisos e molhados e ela escapou das minhas mãos. Eu vi seu corpo
se revolvendo na água. Vi suas orelhas, com as pontas pretas, girando
num tipo de redemoinho e se afastando. Eu mergulhei na água, tentei nadar, mas quando tirei a cabeça para fora da água, ela já
tinha desaparecido naquele turbilhão de água, e eu a perdi de vista, quando estava
chegando perto da cachoeira.
“Lepo
ouvia tudo atentamente, com olhar de compaixão e os olhos marejados de
lágrimas.”
“Sabe,
Lepo, o que mais me dói nisso tudo é que eu me sinto culpado. Eu não era um
profissional e não sabia lidar com isso. Não deveria ter ido lá naquela noite.
Às vezes, fico pensando que deveria ter segurado sua mão
por mais um pouquinho, que deveria ter tido um pouco mais de força.
Outras vezes, fico pensando que eu deveria ter falado mais coisas, ou ouvido
mais. Eu deixei o cara escapar, Lepo, e
ele se foi. Não sei nem o nome do cara. Nunca mais o vi. Ele deve ter caído na
cachoeira”, sentenciou Ranny, banhado em suor e trêmulo. Seu corpo estava tendo
espasmos musculares fortes, ele se esforçou para continuar.
“Às
vezes, fico imaginando que se eu tivesse o poder de andar sobre as águas, eu
teria ido atrás dele e o salvado.”
Ranny
não mais se conteve e começou a chorar compulsivamente.
Lepo ficou em silêncio por alguns instantes.
Depois se aproximou de Ranny e o segurou
pelas mãos. Ranny começou a chorar e se contorcer na cadeira. Chorava
amargamente e num tom alto.
“Lepo,
quero te dizer uma coisa: você ajudou esse cara”.
“Ele
se foi, Lepo, eu o vi sendo levado pela correnteza e sumir no escuro da noite.”
“Você
o ajudou sim, Ranny, teve a intenção de salvá-lo”.
“Mas
eu não consegui salvar o cara”, insistiu, agitando o corpo todo e se retorcendo
cada vez mais, “a água o levou”.
“Ranny,
você não deve se sentir culpado por isso.”
“Mas
ele se foi, e eu deveria ter feito algo
mais...”
“Ranny,
nem sempre os médicos conseguem salvar todo mundo, mas eles fazem a parte
deles. Já pensou se eles desistissem de tentar salvar os outros?”
“Tudo
que eu queria era poder caminhar sobre as águas, como Jesus Cristo”
“Ranny,
você não pôde caminhas sobre as águas, mas você foi capaz de realizar outros
milagres. E todas as pessoas são capazes de realizar esses milagres.”
Ranny chorava copiosamente e recobrou um pouco de forças para perguntar:
“Que
milagres?”
Ranny,
você não pode caminhar sobre as águas, como Cristo, mas você se aproximou da
lebre, conversou com ela, a animou e estendeu suas mãos, entende?
“Sim,
mas quais são os milagres?”, insistiu.
O
milagre de se aproximar das pessoas quando elas estão se sentindo nas trevas, o
milagre de conversar e falar com elas, o milagre de as encorajar para não terem
medo e o milagre de estender as mãos, Ranny, e você fez tudo isso”, disse Lepo, apertando suas mãos firmemente.
“Mas
eu não consegui salvar o cara, Lepo, eu fracassei, não adiantou nada.”
‘ “Você
conseguiu, sim Lepo, claro que conseguiu”.
“Como
você pode ter certeza disso”, indagou Ranny, tentando controlar os soluços e
chorando amargamente. Lágrimas cálidas rolavam de seus olhos inchados.
“Como
você pode ter certeza?”
“Ranny,
relaxe, um pouco, tente se recostar na cadeira”, propôs Lepo, “fique com a
coluna reta e respire bem fundo, você vai ficar bem. Não tenha medo, cara, eu
estou aqui com você. Segure minha mão”.
Quando
Lepo segurou Ranny pela mão, ele reviveu todo o episódio com a Lebre e perdeu o
controle total de seus sentimentos. Desta vez, ele se atirou de bruços no chão e só conseguia
chorar.
Lepo
achou melhor não dizer nada e deixar que Ranny extravasasse seus sentimentos.
Depois de alguns minutos, Lepo retornou o diálogo e disse:
“Ranny,
coloque uma mão no peito e outra no diafragma e respire bem. Vamos, cara,
respire bem profundamente. Agora prenda a respiração por alguns segundos e
exale bem de vagar. Você vai se sentir bem, cara, confie em mim, estou aqui com
você.”
Ranny lentamente começou a se recuperar depois
desses momentos catárticos. Sua respiração parecia ter voltado ao normal e ele
sussurrou:
“Eu
não consegui salvá-lo, eu não consegui salvá-lo, ele se foi...”
“Ranny,
quero dizer mais uma coisa: você não teve medo e se aproximou daquela lembre
quando todas as outras rãs ficaram com medo e se afastaram”.
Ranny
o interrompeu mais uma vez e continuou:
“Eu
não tive forças, eu não consegui, eu fracassei, ele se foi e eu não consegui
salvá-lo”.
“Conseguiu,
Ranny, você o salvou sim”, insistiu.
“E
como você pode estar tão certo disso. Lepo?”
“Porque a Lebre era eu, Ranny, aquela lebre a quem você estendeu a mão era eu.” Desta
vez foi Lepo que começou a chorar sem
parar. “A lebre que você tentou salvar era eu...”
Ranny
ficou emudecido e perplexo.
“E
como você sabe que era eu?”
“Acho
que você consegue se lembrar da letra desta canção, Ranny”:
‘Eu posso ver
claramente agora, a chuva passou. Posso ver todos os obstáculos na minha
frente. As nuvens negras que me cegavam se foram. “Será um brilhante dia de
sol”
“Ranny olhou fixamente para as orelhas atentas de Lepo
para os seus olhos, e num gesto quase que automático, continuou citando a letra
da canção”:
“Acho que
agora eu posso conseguir. A dor se foi. Todos os sentimentos ruins
desapareceram.”
Em seguida, os dois recitaram em uníssono a sequencia:
“Eis o
arco-íris pelo qual eu rezava. Será um brilhante dia de sol!”
Depois disso, ambos se abraçaram e choraram por longos
minutos.
Os dois se sentiram aliviados. Era como se tivessem deixado verter todo sentimento de
angustia, amargura e tristeza.
Lepo enxugou as lágrimas e ajeitou as mercadorias e o óculos virtual de papelão que haviam
feitos numa embalagem bem bonita.
Quando Ranny estava para sair, o fez se lembrar da coleção de figuras de ação e dos
bonecos.
“Ranny, agora estarei sempre aqui. Antes que você vá,
lembre-se de quando me disse para eu não ter medo. Agora quero que você pense
nisso também. Sei que com o tempo você vai ser capaz de vencer cada medo, mesmo
que isso leve algum tempinho”.
“Eu sei Lepo, mas você pode me acompanhar até minha
casa?”
“Claro Ranny, eu vou estar sempre por perto para tudo
que precisar”
Assim que Lepo deixou Ranny na porta de sua casa, ele
entrou correndo para ver o resultado de suas pesquisas. Não viu nada de
extraordinário e já ia dar tudo por
encerrado, quando se lembrou de transliterar
as letras latinas para outros alfabetos.
Depois da
transliteração, o resultado da pesquisas forneceu várias ocorrências,
dentre as quais uma chamou a atenção de Ranny:
“ME PHOBEISTHE - idioma detectado: Grego Koinê.” Significado:
Não
tenham medo!
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