O sol quente do último dia de primavera
era prenúncio de um verão escaldante, mas não importa, pois era isso mesmo que
Ci esperava.
Levantou-se cedo, depois de ter passado o inverno todo e parte da
primavera recolhida, como uma monja contemplativa, fazendo planos e imaginando
como seria o verão e o próximo ano.
Já era hora de agir, embora as más
línguas insistissem em afirmar que as cigarras não eram dadas ao batente.
− Pronto − disse Ci a si mesma − agora essas letras estão
perfeitas e não vejo a hora de ensaiar o novo arranjo daquela bela canção da
Simone.
A parte da melodia que mais gostava e achava mais
significativa era a que dizia: − si, si, si, si, si... − que não
parava de cantar o dia todo.
Já era hora de botar a cara para fora e curtir todo o verão: −
Basta de contemplação − determinou a si mesma.
Mal pusera os pés para fora e já dera de
topo com sua velha amiga: uma formiga atarracada, baixinha, mas sempre ativa,
sempre com o olhar vasculhando tudo ao redor, como se estivesse procurando por
alguém ou tentado escapar de algum chamado, como se estivesse se escondendo (o
que, de todo, não era uma mentira).
−
Oi, Miga, há quanto tempo, já faz meses que não a vejo! Sempre correndo,
né?
− Pois é, Ci, as coisas lá no formigueiro estão superagitadas com a Copa do
Mundo; além disso, estão implantando uma nova rede de trabalho. Estão
implantando um sistema de certificação de qualidade e as formigas-gerentes não
param de pegar no pé. E você, como anda?
− Fazendo o que sempre faço, Miga, cantando, cantando, cantando... Um dia canto
aqui, outro acolá, e a gente vai levando...
− Mas Ci, me diga uma coisa − perguntou com as antenas eriçadas e ar de
curiosidade.
− Você só canta ou você trabalha também?
Ci
ficou meio chateada com a pergunta, mas viu que não havia sido maldade da amiga
e decidiu explicar:
− Poxa, miga, cantar também é trabalho... Eu passei o inverno todo, recolhida,
contemplativa, escrevendo letras, compondo... Agora nada mais justo do que
querer expressar minha arte e meu trabalho no verão.
− Ah, desculpa, Ci, mas eu queria saber se você tem outra atividade além
de cantar.
− Bom − pensou um pouco a cigarra − eu gosto de dançar também. Alias eu ia te
convidar pra ir a uma balada comigo está noite.
− Acho que não vai dar − respondeu prontamente − hoje a gente vai ter de
fazer serão − afirmou com presteza, mas seus olhinhos brilhantes não
puderam esconder o desejo de ir − Ah, Miga, hoje é sexta-feira, as coisas
começam mais tarde...
− Eu sei, Ci, mas é que estou com forte dor da coluna e com o braço todo
formigando; carreguei umas folhas enormes hoje, mas onde vai ser?
−
Num barzinho lá na Vila Madalena, meu amigo Grilo vai tocar lá. Por que não vem
com a gente? Ele é DJ e vai tocar umas músicas da hora e ensinar a gente a
dançar rebolation e psy trance.
− Não vai dar mesmo, Ci, tenho de estar em forma para a semana que vem: os
auditores internacionais vão fazer uma devassa no formigueiro e vai ter
auditoria, além do inventário.
− Mas, Ci, aquele seu
amigo Grilo é meio esquisito, né?
− Como assim, Miga?
− Ah, sei lá, ele é
meio noiado.
− Não, miga, ele é
superlegal, gosta muito de cantar também, mas é o jeitinho dele, é que ele é
emo.
−
Hmm, sei não, Ci, posso te fazer uma pergunta, você não vai se ofender?
− Fala, Miga −
respondeu a cigarra meio seca, imaginando, pelo tom de voz da amiga, que a
pergunta seria relacionada ao uso de certas ervas ou coisa do gênero − você não
acha que cantar faz mal? Você não tem medo de ficar cantando por aí o tempo
todo? Um dia desses ouvi falar de uma cigarra que explodiu de tanto cantar!
−
Pois em minha opinião cantar só faz bem, Miga, bem pra gente e pros outros. E
se for esse o caso, eu quero morrer cantando mesmo, disse já meio sem paciência
e emendando com um tom provocativo: − si, si, si, si, si...
− Desculpa, Ci, eu não queria ofender. Bom, acho que tenho de ir...
− Não quer almoçar comigo?
− Onde, em sua casa?
− Em casa não tem nada, Miga, eu levantei meio tarde e só tem umas folhas
murchas no meu tronco, mas a gente poderia comer alguma coisa no MacBob’s.
−
Hoje não vai dar Miga, meu chefe não deixa a gente almoçar fora do formigueiro.
−
Putz, que chefe escroto! O sindicato sabe disso? Por que você não o manda...
−
Ele não é escroto não, Ci − interrompeu a
formiga com certo ar de indignação − ele é muito justo com os funcionários. É
que ele anda meio apreensivo com
a mudança de filosofia nesses tempos de globalização. Mas ele é muito justo.
−
E qual é a filosofia nova que ele pretende adotar?
−
Um novo conceito de administração. Ele acha que o sistema atual, o fordismo, já
está ultrapassado. Hoje ele quer implantar o sistema Seven Beta.
− Bom − entusiasmou-se a
formiga, assumindo uma postura um tanto professoral − no sistema Seven Beta, as formigas
trabalham visando à organização e a limpeza total do formigueiro sem
desperdício nenhum, com foco na produção, controle de qualidade e redução do
estoque de folhas... São só dois turnos de 12 por 12, e as formigas ficam em
fila e vão passando as folhas uma às outras o mais que puderem, todas
devidamente uniformizadas. Vai ser o máximo − arrematou a formiga extasiada,
respirando bem fundo e virando os olhos para o céu.
− Não vejo a hora de implantarem esse
sistema globalizado, Ci, com a nova rede de trabalho implantada, vai ter
câmeras instaladas em todos os cantos, e as formigas da matriz do formigueiro
internacional vão ficar monitorando de perto a atividade de cada formiga do
formigueiro-filial. Por exemplo: a formiga-contadora da matriz vai ficar em
contato permanente com a formiga-contadora daqui, e tudo que ela pedir a
formiga daqui tem de obedecer, como se fosse uma extensão dos braços, olhos,
ouvidos, mãos, pés, da formiga da matriz, não é legal isso?
Ci ficou meio pensativa e interessou-se
sobre como seria o modelo dos uniformes, pois também achava que moda era uma
arte e lhe fascinava tudo que era relacionado às artes: poesia, literatura,
música, escultura, cinema, teatro...
− Como vai ser o modelo, Miga?
− Ai, meu chefe é um gênio e pensou
nisso também! Ele criou um código de vestimentas e conduta e mandou uma
circular interformigueiros, dizendo que as formigas devem vestir um taierzinho
sóbrio azul-marinho para evitar que as formigas-operárias, você sabe, os peões
da rádio formigão, fiquem dando em cima delas. Portanto, nada de sandálinhas ,
blusinhas decotadas e roupas que exponham demais o corpo das formigas, pois ele
as quer preservar de assédios sexuais. Ele pensou em tudo, até o tipo de
perfume. Nada de perfumes fortes, se bem que, como ele é muito inteligente,
estava querendo evitar o uso de perfumes que emulam feromônios para não
assanhar aqueles formigões tarados.
− Eu acho que não me enquadraria. Com
essas asas transparentes e quase nada por baixo, seu chefe ia me enxotar.
− Ia mesmo, Ci, da pra ver até sua
calcinha! No final do comunicado ele disse que em caso de desobediência, o
chefe imediato da formiga a mandaria de volta para a casa, sem pagamento pelas
horas perdidas, e a formiga em questão só voltaria com trajes adequados.
− Mas Miga, o clima do formigueiro é
tropical, eu imagino que com todas aquelas operárias se movimentando, deve ser
muito quente, eu mesmo tenho que me refrescar numa árvore ventilada pra escapar
desse calor.
− É, Ci, mas é um sacrifício que a
gente de tem fazer para o bom andamento do trabalho.
− Miga, lá no
formigueiro-matriz também é o mesmo uniforme?
− Não, lá as formigas trabalham de
bermuda e camiseta regata, vê se pode? − Mas, Miga, por que lá é diferente?
− indagou a cigarra, coçando o queixo e tentando entender.
− Porque lá neva muito, então
tem um sistema de aquecimento muito forte e eles permitem que as formigas
operárias lá fiquem mais á vontade, além disso, lá na matriz é primeiro mundo e
não tem esse problema de assédio.
Ci esfregou as mãos no rosto, balançou a
cabeça e cantarolou mais um pouco:
− Si, si, si, si, si... Mas Miga, esse lance do fordismo, no que o
sistema novo do seu chefe é diferente? Será que isso dá certo? Eu acho que as
formigas brasileiras são muito versáteis e criativas. Você acha mesmo que uma
formiga brasileira iria conseguir trabalhar se não pudesse exercer sua
criatividade? Será que elas iam se contentar em só ser uma extensão das
formigas da matriz do seu formigueiro?
− Ci, você não entende... As formigas
brasileiras são preguiçosas e corruptas. Meu chefe não dá ponto sem nó. Tipo,
uma vez, numa reunião, ele disse que as formigas deviam expressar suas opiniões
e demonstrar sua criatividade sem medo. Ele disse que as ideais das formigas
eram propriedade intelectual da empresa. Mas veja como ele é ético, para não
haver brigas e atritos, quando a ideia é boa, ele diz pro CEO que a ideia é
dele. Que sabedoria! Que homem sábio e justo! Que ética! − suspirou mais uma
vez.
− Bom, eu acho que está
dando minha hora, Ci, não quero chegar atrasada.
− Eu entendo, Miga, também
preciso ir.
− Vai cantar
mais um pouco?
Desta vez a cigarra viu um
quê de deboche, mas manteve a pose:
−
Não, Miga, hoje eu não vou cantar, mas vou participar de um encontro de
escritores e poetas na Casa do Escritor. Vai ser um sarau poético sobre a
influência do futebol na cultura brasileira e eu não posso perder.
− Hmm, sarau poético! − exclamou a formiga, coçando a testa e olhando
para baixo. Por que o governo não dá palestras sobre o sistema Seven Beta, meu chefe pode
ajudar? Ah, e não se esqueça de cantar uma canção pra mim, adoro quando você
canta
−
Deixa quieto, Miga − replicou a cigarra desanimada, não sabendo se era um
deboche mesmo ou um pedido de coração.
Depois do encontro Ci retornou para sua casa na árvore pensativa.
No fundo tinha certa admiração pela formiga e ficou imaginando se não deveria
seguir um pouco o exemplo de uma formiga tão laboriosa e dedicada. Passou a
semana toda meditando no assunto.
Na semana seguinte, encontrou outra formiga que lhe comunicou, de
supetão, a morte súbita de sua amiga: Morrera de uma síncope fulminante a
caminho do almoxarifado, onde se estocavam as folhas mais tenras para o
inverno.
Ci ficou abalada, apesar de tudo adorava a amiga Miga quando ela
lhe explicava sobre o Seven
Beta.
No fundo ficou triste demais pela perda da amiga e confortou-se no
galho mais proeminente da árvore mais alta, onde se pôs a cantar a todo pulmão:
“Porque você pediu uma canção
para cantar
Como a cigarra arrebenta de tanta luz
E enche de som o ar
Porque a formiga é a melhor amiga
da cigarra
Raízes da mesma fábula que ela arranha
Tece e espalha no ar
Porque ainda é inverno em nosso
coração
Essa canção é para cantar
Como a cigarra acende o verão
E ilumina o ar
Si, si, si, si, si, si, si, si...”